domingo, 8 de agosto de 2010

A cambada de meu avô

Essas datas comemorativas as vezes servem para reencontros, festejos, comida boa. A de hoje, a mim, só serve para dar mais saudade de meu avô. Era com ele que eu passava os dias dos pais, era com ele que eu passava minha vida, vizualizava meu futuro.

Ismael, Irma, Aismaié.... todo dia um nome novo, inventado pela força do carinho daqueles momentos. Uma figura única, enlouquecida. Quando deu de enlouquecer de verdade por causa dos muitos anos vividos, curtíamos suas aventuras como se fóssemos companheiros de viagem. Era um tal de cortar cana nas pernas do criado mudo, conversa com o parceiro de juventude Sr. Guarda-roupa, atentar o juizo das empregadas, pirraçar minha irmã, irritar Rita, gritar Leila na porta e casar com Paula.

Um dia estávamos assistindo televisão na sala e ele a falar sozinho dos amigos. Então Huguinho, um amigo meu, levantou e convidou o Coronel Aismaié para um bordejo pela cidade, na rua principal (longo corredor da casa) de Amélia Rodrigues. O Coronel colocou um chapéu, arrumou o paletó/pijama e saiu de braços dados com o seu serviçal.

Chamaram pelo Coronel Osvaldinho na primeira porta que encontraram (banheiro), ninguém atendeu. Passaram pela igreja matriz (oratório) e Aismaié fez uma oração pedindo proteção aos seus. Seguiram viagem até a casa seguinte (quarto do meio). "AHHH merda! Não tem ninguém em casa hoje. Duvalzinho também saiu!" Falava irritado sem conseguir encontrar os companheiros da birita.

- Coronel Aismaié, já está ficando tarde e estamos chegando perto de sua casa (quarto de meu avô), não é melhor a gente se descansar, tomar uma água? Depois voltamos para ver a turma.

-É, meu filho, você tem razão. Deixa esses cornos para lá. Vamos para casa que é melhor.

Os dois entraram no primeiro quarto do corredor. Hugo ajeitou meu avô na cama, deitou, dormiu e sonhou com os tempos em que andava com a cambada. Pouco depois ele não levantou nunca mais daquela cama.

E hoje essa data me fez chorar sentindo o cheiro da torrada assando, do lençol lavado, do mofo no quintal, do bafo de cachaça e das risadas que não consigo mais ouvir.

Em 2001 eu me despedi de meu avô comemorando a minha formatura. Foi numa segunda-feira de manhã, ele sem lembrar mais de ninguém, sem conseguir ouvir e falar direito. Beijei seu nariz e disse-lhe que eu havia conseguido me formar, pois sabia que aquele era um sonho seu. Ele que vivia inerte na cama, se virou em minha direção e me disse um "parabéns, meu filho!". Naquele momento eu sabia que ele retomou a lucidez,me reconhecendo e vibrando comigo. Nos dissemos tchau e no dia seguinte ele se foi para encontrar a cambada num lugar que eu não sei onde é, mas que adoraria ir agora lhe dar um beijo.

Nesta mesma semana eu partcipei de uma exposição para conclusão do curso e fiz com o arame do quintal o "Varal de meu avô" com minhas colagens, tênis, objetos de minha vida e ele. Ainda coloquei uma cópia dessa música de Fátima Guedes que deve ter conhecido Coronel Aismaié em alguma esquina dessas por aí.
Vale muito a pena ouvir esta canção clicando no título abaixo.


No fim da casa
Fátima Guedes

O quarto do meu avô
Já se sente um quarto de morto, já
Muito embora vivo ele esteja aqui
Nem sabe quão morto ele vive lá

O quarto do meu avô
Tem uma caca que desarma
Na mesinha um retrato e uma flor
Que ele usa como arma

E conta e reconta e torna a contar
Os casos do tempo de moço
Herói das horas do jantar
O mesmo herói da história do almoço

O quarto do meu avô
Tem um velho armário enorme
Tão grande que inibe um sonhador
E ele nem cochila enquanto dorme

O quarto do meu avô
Tem a extensão que a noite corta
Tão escuro que não se enxerga a dor
Tão profundo que não se abre a porta

E reza e reveza a prece das seis
Quem nunca foi religioso
Agora é o que resta de um que foi três
Dos três, o mais laborioso

Quando ele veio pra nós
Trouxe a viuvez no corpo de leão
Trouxe a mala aberta, orgulho aberto
Pijama, pinico e carrilhão

2 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Avô é pai elevado ao quadrado. Recordações especiais: seguramente ele entendeu, lúcido num momento importante, que vc tinha se formado.

Anônimo disse...

Sr. Isma era uma figura ímpar, com sua face serena sempre nos transmitia alegria, ficar ao lado dele era pura felicidade, pois nos fazia exercitar os músculos da face com suas lindas estórias. lembrar de Isma é viver um conto de fadas, fantasias nunca mais vividas. Sempre lembro dele com seu pijama azul debruçado na janela acenando para todos que ali passava. Lembro das nossas reuniões na casa dele...As caranguejada, os jogos da copa e os cafés da tarde para nos deliciar com suas maravilhosas torradas e bater aquele velho papo, foram momentos bons e especias que jamais esqueceremos. Sempre que passo pela porta da casa dele olho para ver se ele está na janela, ainda não perdi o costume. Muito bom lembrar de Sr. Isma e dos momentos vividos ao lado dele!Só nos resta a saudade e as boas lembranças. O céu ganhou uma estrela iluminada, e está fazendo a alegria dos anjos, pode ter certeza que ele está emanando muita luz e boas vibrações para todos que fizeram parte de sua vida. Que Deus cuide sempre dele.Bjs