Carta aos bípedes / Letter to the bipeds / Carta a los bípedos

Carta aos bípedes,

 

Você, talvez, não se dê conta, mas você é bípede. Sim, se você não possui nenhuma deficiência e é parte da categoria de pessoas construídas dentro de padrões normativos de corpo que consideram as experiências da deficiência como patologia; se nos olha com sentimento de pena, compaixão, coitadinho; se considera a pessoa com deficiência improdutiva, menos capaz e menos bela; se considera a deficiência como se fosse uma experiência única que se repete da mesma maneira para todas as pessoas e desconsidera a grande diversidade das deficiências e suas especificidades, você é bípede. Se a sua inclusão quiser nos colocar nos cercadinhos específicos que mais excluem, sim, você é bípede. Se entende que o corpo sem deficiência é a única possibilidade de normalidade, sem dúvida, você é bípede.

 

Deixa eu te explicar que a bipedia, na minha perspectiva, é a estrutura sócio-econômica-cultural-política que determina o que é normal e o que é anormal, capaz e incapaz. O que apresento como bipedia não se trata da maneira de andar, é sobre o sistema de opressão pautado numa construção também histórica da normalidade, assim como é construída a ideia de deficiência. A Teoria Crip, apresentada por Robert McRuer, aponta que essa construção está ligada a interesses econômicos e políticos que instauram uma compulsory able-bodiedness e normalizam ideologias dominantes visando a produtividade. 

 

Assim, identifico também na área da Dança estruturas que determinam um padrão de corpo apto para dançar e exclui o que consideram deficiente, inapto e incapaz. Isso é o que chamo de bipedia compulsória.

 

Portanto, você é bípede se a sua Dança desconsidera as possibilidades de diversos corpos e não se dá conta das limitações da própria bipedia que ao longo do tempo repete os clichês de uma verticalidade e virtuose tão redutores do entendimento de dança e corpo; se nas suas escolhas estéticas, artísticas e, portanto, políticas, você mantém e reproduz espaços de invisibilidade e não reconhecimento da produção de artistas com deficiência; se na sua curadoria você não se dá conta de que o tema secular da Dança é o corpo branco-cisgênero-bípede que ocupa hegemonicamente a programação de seus festivais e quando considera a possibilidade da nossa presença, você nos trata como exóticos, como um tema a ser estudado, debatido; se em suas aulas e metodologias você nem considera a possibilidade da presença de alguém com deficiência e somos nós que precisamos nos adaptar; se na sua produção você não se importa com a acessibilidade, negligenciando seu público; se você for jornalista, continua insistindo no tom sensacionalista em matérias que nos tratam como nos antigos freak shows. O que falar então das seus programas de TV, seu teatro, seus musicais, seus filmes e histórias de amor que você supõe que eu nunca poderei viver? Você entende? O pensamento bípede está em todo canto, domina todos os espaços e nos invisibiliza, nos recusa. Com quantas pessoas com deficiência você convive ou já trabalhou?

 

Eu queria mesmo entender quando você pensa em Dança, qual o corpo pode dançar a sua Dança? Quem pode fazer a sua arte? Quem pode assisti-la? Se todo corpo é a própria pessoa, pois não existe um corpo isolado da pessoa, que pessoas cabem na sua caixinha? Quem você deixa fora? O que você pensa sobre deficiência? Quais as palavras você associa à deficiência? E quando pensa na relação Dança e Deficiência ou Arte e Deficiência, quais as imagens que surgem? Que referências você tem sobre o tema? E se você não tem nenhuma referência ou segue o senso comum, como se arvora a julgar nossa competência e produção? Você sabe tão pouco sobre tanta coisa!

 

O buraco é mais embaixo... e as rodas da minha cadeira não conseguem atravessar. Vocês sempre criam buracos para eu não me aproximar tanto de vocês. Vai que a deficiência é contagiosa, ne?! Aliás, o buraco é mais em cima, abissal, como diz Boaventura de Sousa Santos, estabelecendo quem pertence e quem não pertence a um determinado lado da linha que vocês inventaram para criar hierarquias e espaços de poder sobre quem está autorizado a falar e quem deve silenciar ao longo da vida, subjugado às suas ordens. Você, bípede, nos prende no quartinho dos fundos para esconder aquilo que revelamos sobre vocês mesmos. Vocês tem medo de nós.

 

Vou te contar uma história que li no livro Holocausto brasileiro - Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil, escrito por Daniela Arbex. Antônio foi internado no manicômio de Barbacena e passou vinte e um anos em total silêncio, por isso, era considerado mudo pelos funcionários do local. Um dia, Antonio soltou a voz ao ouvir uma banda de música. Todos se espantaram e perguntaram porque ele não tinha informado que falava. Ele, então, responde: uai, ninguém nunca perguntou.

 

Pois bem, vocês também nunca me perguntaram, mas eu não silencio e repito incansavelmente: VOCÊS, BÍPEDES, ME CANSAM!

 

Sem dúvida não conseguimos desconstruir e destruir estruturas tão fixas assim. O pensamento bípede é da nossa estrutura social, molda e limita a compreensão de corpo e de mundo que anula qualquer experiência fora do que é considerado normal. Essa normalidade não existe, bípede. Acredite em mim! Repense, reveja, mude esses conceitos. Não dá mais para você continuar vivendo montado em tantos privilégios. Sabe por que? 

 

Eu percebo um vento que vem de longe para soprar - quem sabe - alguma mudança. Nós - pessoas com deficiência - estamos ocupando espaços, furando algumas bolhas. É da ordem do existir mudarmos quando entramos em contato com o outro, nos perturbamos com o desconhecido ou, nesse caso, nem tão desconhecido assim, mas justamente por ser tão conhecido nem nos damos conta. O encontro… o contato… transformam.

 

Agora, falo aos meus pares, esses “corpos intrusos”, como diz Estela Lapponi, que chegam sem pedir licença, invadem onde não foram historicamente chamados e rompem tudo desde a arquitetura até as atitudes, a comunicação, a tecnologia… “corpos intrusos” que instigam, incomodam, “coçam o meio das costas”, furando essas bolhas para afirmarem o que somos e rejeitarem padrões impostos. Jamais esquecer de que quando entramos nos espaços os transformamos. Experiência vivida não se apaga. Ninguém fala por ninguém, ninguém fala por nós, mas podemos compreender o universo do outro e tentar criar junto com ele.

 

Eu te escrevo, bípede, não para aumentar os abismos que tantas vezes vocês nos jogaram desde a Grécia antiga (lembra?), mas para criarmos pontes, para vocês se darem conta das violências que provocam cotidianamente até mesmo no tratamento que pensam ser carinhoso, mas vem carregado de compaixão, pena. Eu sei, alguns de vocês nem sabem.

 

Mas, olha, se já havia passado da hora da mudança, não será este o momento para transformarmos nossos hábitos de consumo, romper padrões que criamos, repetimos e nos determinam o que é belo, o que é produtivo e capaz? Quando sairmos desse isolamento imposto pela Covid 19 que vocês bípedes estão achando uma novidade, mas que para nós - pessoas com deficiência - é uma condição imposta rotineiramente pela falta de acessibilidade e oportunidades, o que vai importar? Quais vidas importam? Umas mais outras menos? 

 

Você até aparece defendendo causas importantes e com certa visibilidade, mas na sua militância em defesa da vida, você pensa na vida da pessoa com deficiência? Se não, bípede, me desculpe te desapontar, mas eu não acredito na sua luta. Sabe por que?

 

Porque o corpo com deficiência é futuro. Tenho repetido isso incansavelmente. A experiência da deficiência é um porvir constante para qualquer pessoa sejam mulheres, homens, negras, indígenas, transsexuais, cisgêneras, gays, lésbicas, assexuadas… se não por alguma surpresa do destino, pela própria vida. Sim, quando envelhecemos é porque nos mantemos vivos e o envelhecimento é companheiro da deficiência. Entender o corpo com deficiência como futuro é pensar na contribuição que estudos da deficiência tem trazido para diversas áreas da ciência, desde estudos da medicina, quanto robótica, tecnologia, comunicação, artes… enfim, pensar por outra via, pensar dialogicamente, desconstruindo uma perspectiva de subalternidade da deficiência. Se todo mundo pode vir a ter deficiência, não seria melhor construirmos um mundo a partir dessa realidade?

 

Pelo futuro que já é agora, desejo que nós, pessoas com deficiência, ocupemos espaços de visibilidade porque somos multidão. Tentar quebrar as barreiras impostas pela normatividade deve ser o que nos faz mover e mostrar essa história ainda pouco contada e quase nada acessada por grande parte das pessoas. Para mim, isso é o que me faz existir nesse passado-presente-futuro-AQUI

 

Até breve,

Edu O.


Foto colorida. Edu O. é um homem cis, branco, de barba e bigode grisalhos, nariz grande e sobrancelhas grossas. Ele usa roupa preta, cartola cinza, cílios postíços pretos e batom vermelho. Está  no meio de uma rampa revestida de lajota cinza, apoiado com a mão esquerda no chão e o dedo indicador da mão direita para cima. Com a cabeça levemente voltada para a esquerda e para cima, nos encara com um olhar sério
Foto de Brisa Andrade

 

Dear Bipeds,

You may not be aware of it, but you are a biped. Yes, if you do not have any disabilities, fall within the standard-body category and you view disability as a pathology; if you feel pity and compassion for us “poor things”; if you consider people with disabilities to be unproductive, 

less capable and less beautiful; if you think of disability as a unique experience or one that affects everyone the same way; if you overlook the wide diversity and particular aspects of disabilities, then yes, you are a biped. If your idea of inclusion fences us off in areas that exclude 

us more, yes, you are a biped. If you think that a body without disabilities is the only normal one possible, yes, you are undoubtedly a biped. 

From my perspective, bipedalism is a social, economic, cultural, and political structure that determines normality and abnormality, capability and incapability. For me, bipedalism is not just the way you walk but a system of oppression based on the traditional concept of what it means to be “normal” or “disabled.” In Robert McRuer’s Crip Theory, the construction of “normal” connects to the economic and political interests that establish a compulsory able- bodiedness and normalize dominant ideologies aimed at boosting productivity. In dance, these same structures enforce a standard of able- bodiedness and exclude those it considers disabled, unfit, and incapable. This is what I call compulsory bipedalism. 

Therefore, you are a biped if your dance ignores the possibilities of different bodies; if you are unaware of the limitations of your own bipedalism which over time repeats the reductive clichés of verticality and virtuosity in dance and use of the body; if your aesthetic, artistic, and therefore political choices maintain and reproduce invisibility strategies and non-recognition of works by artists with disabilities; if, as a curator, you fail to recognize that the white-biped- cisgender body is predominant in festival dance programmes; if you consider our presence 

as something exotic, as a theme for study or discussion; if your classes and methodologies do not even contemplate the involvement of the disabled, making us the ones who need to adapt; if your production does not care about accessibility, showing indifference to your audience; if, as a journalist, you carry on writing sensationalist articles that treat us like in the freak shows of the past. If you approach dance or art in any of these ways, then you are a biped. 

How am I supposed to feel about your TV programmes, plays, musicals, movies, and love stories when you assume that I’ll never be able to live? Do you understand? Biped thinking is everywhere, it dominates all spaces, makes us invisible, and rejects our very existence. How many disabled people do you live with or have you worked with? 

When you think about dance, what body can dance your dance? Who can perform your art? Who can watch it? If the whole body is the person — because bodies cannot be detached from
the person — who do you include? Who do you leave out? What do you think about disability? What words do you associate with it? When you think about dance and disabilities or art and disabilities, what images come to mind? What are your reference points? And if you do not have references or cannot apply common sense, how do you judge our competence and production? You know so little about so many things! 

There is more to it than what meets the eye... and yet it’s still an obstacle course for the wheels on my chair. You always dig holes so I can’t get too close to you. Perhaps you think my disability is contagious. Or, as Boaventura de Sousa Santos says, “there is less to it than what meets the eye.” Establishing who belongs and who doesn’t belong on the side of a line invented to create hierarchies between some who are authorized
to speak, and others condemned to a lifetime
of silence and submission is quite simple. You, biped, lock us away in a little backroom to hide what we reveal about you. You are afraid of us. 

I’m going to tell you a story I read in the book Holocausto brasileiro - Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil (Brazilian Holocaust
- Genocide: 60,000 Deaths in Brazil’s Largest Psychiatric Hospital)
, written by Daniela Arbex. Antônio was admitted to a psychiatric hospital in Barbacena and spent 21 years in total silence; the hospital staff considered him to be non-verbal. One day, Antonio uttered a sound when he heard music playing. Everyone was shocked. When asked why he had not told them he could speak, he simply said, “because no one ever asked.” 

Well, you never asked me either. But I’m not going to hold my tongue, and I’ll say it over and over again: “YOU BIPEDS WEAR ME OUT!” 

Without a doubt we cannot deconstruct and destroy such deeply ingrained mindsets. Biped thinking is an integral part of our society. It molds and limits our comprehension of the body and the world; discounts any experience not considered normal. This normality does not exist, biped. Believe me! Rethink, revise, change these concepts. You cannot continue to enjoy so many privileges. Do you know why not? 

I feel a wind approaching from far away, perhaps a wind of change. We, the disabled, are finding our place and debunking some stereotypes. We habitually change ourselves when we come into contact with the other. We feel apprehensive when confronted with the unknown or, in this case, the not-so-unknown non-disabled body, but because it is so well-known, we take it 

for granted. Encounters and contacts cause transformations. 

I’d now like to address my disabled friends — those “intruding bodies,” as Estela Lapponi calls them — who come without asking permission, encroach on places where historically we have not been invited, and disrupt everything from architecture to attitudes, communication and technology. Our bodies incite, bother, and disturb. We challenge stereotypes to affirm who we are and to reject standards imposed upon us. Never forget that when we enter spaces,
we transform them. A lived experience cannot be negated. No one speaks for anyone else, no one speaks for us, but we can comprehend the other’s universe and try to co-create with them. 

Biped, I am not writing to you to widen the chasms into which you have thrown us so many times since the times of Ancient Greece. My intention is to build bridges to make you aware of he violence you cause every day, when despite your good intentions you belittle us with your compassion and pity. I get it: some of you may not even be aware of this. 

But the time could be ripe for us to change our consumer habits and dismantle the stereotypes we have created and perpetuated and that ultimately determine for us what is beautiful, productive, 

and capable. When we are free from this isolation imposed upon us by COVID-19 — an isolation that perhaps is a new experience for you bipeds, but which for those of us with disabilities is a condition routinely imposed on us by the lack of accessibility and opportunities — what will matter? Which lives matter? Some more, others less? 

You even appear to support worthy causes in
a visible way, but does your activism take into account disabled lives? If not, biped, I’m sorry to disappoint you, but I do not believe in your fight. Do you know why? 

Because a disabled body awaits us all. This
is a message I repeat endlessly. The disabled experience is our unavoidable future, whether we are women, men, transgender, cisgender, gay, lesbian, asexual, Black, or Indigenous. The disabled experience is our inevitable future either because of some quirk of fate or simply as a result of living. Ageing comes from staying alive, and ageing goes hand in hand with disability. Understanding the disabled body as the future implies thinking about how disabled people and disability studies have contributed
to various branches of science, from medical studies to robotics, technology, communication, and the arts. Understanding the disabled body means thinking differently and dialogically and deconstructing the idea of the subalternity of disability. If everybody will develop a disability at some point, would it not be smarter to build
a world grounded in this fact? 

For the future that is already present, my wish is that we — as people with disabilities — occupy spaces, because we are legion. We should work on breaking down the barriers imposed
on us by social norms and expose this much- overlooked reality of isolation, exclusion, and misunderstanding that is essentially unknown to the majority of non-disabled people. This wind of change is what gives me the strength to exist in this past-present-future-HERE. 

See you soon, Edu O. 

Published in https://elalto.wearethebritishcouncil.org/en/dear-bipeds-en/ 

Queridos bípedos,

Es posible que no lo comprenda, pero usted es bípedo. Sí, si no tiene ninguna discapacidad y forma parte de la categoría de personas consideradas normales según los estándares corporales que conciben la discapacidad como una patología; si nos mira con lástima, compasión, pena; si considera que una persona con discapacidad es improductiva, menos capaz y menos bella; si considera que la discapacidad es un hecho aislado que se repite de la misma manera para todas las personas y no tiene en cuenta la gran variedad de discapacidades y sus especificidades, usted es bípedo. Si su idea de inclusión consiste en aislarnos, entonces sí, usted es bípedo. Si considera que el cuerpo sin discapacidad es la única forma que existe de normalidad, no hay duda de que es bípedo.

Permítame explicarle que el bipedismo, en mi opinión, se refiere a la estructura socioeconómica, cultural y política que determina lo que es normal y lo que es anormal, capaz e incapaz. Lo que planteo como bipedismo no se refiere a la forma de caminar, sino al sistema de opresión basado en una concepción histórica de la normalidad, así como la idea de la discapacidad. La teoría crip, planteada por Robert McRuer, señala que dicha concepción está relacionada con los intereses económicos y políticos que establecen una obligatoria able-bodiedness (capacidad física plena necesaria) y normalizan las ideologías dominantes orientadas a la productividad.

En consecuencia, también identifico en el baile estructuras que determinan un patrón físico ideal y excluyen a las personas consideradas discapacitadas, no aptas e incapaces. Esto es lo que yo llamo “bipedismo obligatorio”.

Por lo tanto, usted es bípedo si su danza/baile desconoce las oportunidades de diferentes físicos y no se da cuenta de las limitaciones del propio bipedismo, que con el tiempo repite los estereotipos de una verticalidad y virtuosidad tan restrictiva de la comprensión del baile y el cuerpo; si de acuerdo con sus preferencias estéticas, artísticas y, por lo tanto, políticas, sigue ignorando y no dando reconocimiento a la producción de los artistas con discapacidades; si según sus estándares artísticos no se da cuenta de que el tema secular del baile es el cuerpo blanco-cisgénero-bípedo que ocupa en su mayoría la programación de sus festivales, y cuando considera la posibilidad de nuestra presencia, nos trata como exóticos, como un tema para ser estudiado, discutido; si en sus clases y metodologías excluye a alguien con discapacidad y cree que somos nosotros los que tenemos que adaptarnos; si en su producción artística no le importa el acceso, descuidando a su audiencia; si es periodista y sigue insistiendo en el tono sensacionalista cuando se refiere a nosotros como freak shows o espectáculos de fenómenos. ¿Y qué me dice de sus programas de televisión, obras de teatro, musicales, películas e historias de amor que cree que nunca podré vivir? ¿Comprende? El pensamiento bípedo está en todas partes, domina todos los espacios y nos hace invisibles, nos rechaza. ¿Con cuántas personas con discapacidades convive o ha trabajado?

Me gustaría saber qué concepto tiene usted de cuerpo cuando piensa en baile. ¿Quién puede realizar su arte? ¿Quién puede presenciarlo? Si una persona es su propio cuerpo, porque tanto el cuerpo como la persona están ligados entre sí, ¿qué personas incluye en su concepto? ¿A quién dejaría fuera? ¿Qué piensa sobre la discapacidad? ¿Qué palabras asocia con la discapacidad? Cuando piensa en la relación entre el baile y la discapacidad o el arte y la discapacidad, ¿qué imágenes vienen a su mente? ¿Qué referencias tiene sobre el tema? Y si no tiene referencias o usa el sentido común, ¿cómo juzga nuestra competencia y producción? ¡Sabe tan poco de tantas cosas!

El problema es incluso más grande de lo que cree… y las ruedas de mi silla siguen teniendo obstáculos. Ustedes siempre crean espacios para que no me aproxime demasiado. Tal vez mi discapacidad es contagiosa, ¡verdad? En realidad, el espacio es menor de lo que parece, es algo abismal, como dice Boaventura de Sousa Santos, estableciendo quién pertenece y quién no a un determinado lado de la línea que ustedes han inventado para crear jerarquías y espacios de poder sobre quién está autorizado a hablar y quién debe permanecer en silencio durante toda la vida, sometiéndose a sus órdenes. Usted, bípedo, nos encierra en una pequeña habitación en la parte de atrás para esconder aquello que revelamos sobre usted mismo. Nos tiene miedo.

Voy a relatar una historia que leí en el libro Holocausto brasileiro. Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil (Holocausto brasileño. Genocidio: sesenta mil muertos en el hospicio más grande de Brasil), escrito por Daniela Arbex. Antônio fue internado en el hospital psiquiátrico de Barbacena y pasó veintiún años en absoluto silencio, de modo que fue considerado mudo por el personal del lugar. Un día, Antônio emitió por primera vez un sonido al escuchar una banda de música. Todos quedaron sorprendidos y le preguntaron el motivo por el que no había avisado que hablaba. Entonces él contestó: bueno, nunca me lo habían preguntado.

Pues bien, a mí tampoco me lo preguntaron, pero no me callaré y lo repetiré incansablemente: ¡USTEDES, BÍPEDOS, ME TIENEN HARTO!

Sin duda no podemos desmontar ni destruir este tipo de estructuras establecidas. El pensamiento bípedo forma parte de nuestra estructura social, condiciona y limita lo que representan el cuerpo y el mundo, anulando cualquier experiencia que se considere fuera de lo normal. Esa normalidad no existe, bípedo. ¡Créame! Reflexione, reconsidere y cambie esos conceptos. No se puede seguir viviendo con tantos privilegios. ¿Sabe por qué?

Percibo un viento que viene de lejos para provocar —quién sabe— algún cambio. Nosotros, las personas con discapacidad, ya estamos encontrando nuestro lugar y derribando algunos estereotipos. Es parte de nuestra existencia que cambiemos cuando entramos en contacto con el otro, nos sentimos incómodos con lo desconocido o, en este caso, con lo no tan desconocido, pero precisamente por ser tan conocido lo damos por sentado. El encuentro…, el contacto… transforman.

Ahora me dirijo a mis pares, estos “cuerpos intrusos”, como dice Estela Lapponi, que llegan sin pedir permiso, invaden donde no han sido llamados históricamente y rompen todo, desde la arquitectura hasta las actitudes, la comunicación, la tecnología…, “cuerpos intrusos” que instigan, incomodan, “son una molestia”, derribando estereotipos para afirmar lo que somos y rechazar los patrones impuestos. Nunca olviden que cuando entramos en un espacio, lo transformamos. Las experiencias vividas no se borran. Nadie habla por nadie, nadie habla por nosotros, pero podemos entender el universo del otro y tratar de formarlo en conjunto.

Me dirijo a usted, bípedo, pero no para ampliar los abismos a los que tantas veces se nos arrojó desde la Antigua Grecia (¿recuerda?), sino para crear puentes, para que se dé cuenta de la violencia que provoca a diario incluso en el trato que usted cree que es cariñoso, pero que está lleno de compasión y lástima. Yo lo sé, pero algunos probablemente no lo saben.

Sin embargo, si ya pasó el tiempo del cambio, ¿no es éste el momento de transformar nuestros hábitos de consumo, de romper los estereotipos que creamos, repetimos y que determinan lo que es bello, lo que es productivo y capaz? Cuando salgamos de este aislamiento impuesto por el COVID-19, que ustedes los bípedos consideran una novedad, pero que para nosotros, las personas con discapacidad, es parte de la vida cotidiana por la falta de accesibilidad y oportunidades, ¿qué importará? ¿Qué vidas importan?, ¿unas más, otras menos?

Usted incluso aparenta defender causas importantes con cierta visibilidad, pero en su defensa de la vida, ¿piensa en la vida de las personas con discapacidad? De no ser así, bípedo, siento decepcionarlo, pero no creo en su lucha. ¿Sabe por qué?

Porque un cuerpo con discapacidad es el futuro. Lo he estado repitiendo incesantemente. Sufrir una discapacidad ya es una garantía del futuro para cualquiera, independientemente de si son mujeres, hombres, negros, indígenas, transexuales, cisgéneros, gays, lesbianas, asexuales…, ya sea por azares del destino, o por la vida misma. Sí, cuando envejecemos es porque nos mantenemos vivos y el envejecimiento es compañero de la discapacidad. Entender que en un futuro el cuerpo sufrirá alguna incapacidad es pensar en la contribución que los estudios de la discapacidad han aportado a varias áreas de la ciencia, desde los estudios médicos hasta la robótica, la tecnología, la comunicación, las artes… En fin, pensar de otra manera, pensar de forma dialógica, desmontando una perspectiva de subordinación de la discapacidad. Si todo el mundo pudiera tener una discapacidad en algún momento, ¿no sería mejor construir un mundo a partir de esta realidad?

Para el futuro, que es ahora, deseo que nosotros, las personas con discapacidad, no seamos invisibles, porque somos una multitud. Deberíamos dedicarnos a romper las barreras impuestas por la normatividad y mostrar esta historia tan poco contada y a la que la mayoría de las personas no tiene acceso. Para mí, eso es lo que me da fuerzas para seguir viviendo en este pasado-presente-futuro-AQUÍ.

Hasta pronto,

Edu O.

Publicado em https://elalto.wearethebritishcouncil.org/queridos-bipedos-esp/

Nenhum comentário: