quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Uma história de circo

“Vá dormir que o sono ocupa o estômago!”

De tanto ouvir sua mãe falar, o menino, que não tinha o que comer nem com quem brincar, decidiu viver na cama, em cima do colchão carcomido, lençol puído de tempo gasto. Por sorte não tinha problema gastro, apesar da barriga vazia. Sua mãe, ocupada nos afazeres diários, sem muita paciência para esta vida que se colocou a sua frente, não prestava atenção naquele menino deitado, quieto, desamparado.

Seu filho não viu as meninas de Zefa crescerem, nem podia saber se gostava de menina ou menino. Não sabia o que eram essas coisas, nem se havia outras coisas senão o sono sem sonho que alimentava seus dias. Vez em quando, de ano em ano, quando o menino fazia aniversário, sua mãe se empenhava em comprar alguma coisa e lhe preparava um café especial com manteiga no pão, leite e o biscoito que toda hora passa na televisão. De novela ela se ocupava. Da vida dos outros também. O menino então se vestia com qualquer roupa diferente das que dormia e sentava na porta da rua sem amigos, sem pipa, sem carrinho. Nem um bolinho para cantar parabéns. Nem um beijo desejando saúde, felicidades, essas coisas. O menino voltava para o quarto ao entardecer e se estendia sem pensar em nada, apenas em dormir para viver.

Foi numa época de calor infernal que uma barulheira na rua fez mudar seu destino. O menino chegou à janela sem vontade e viu a trupe que animava aquela tarde. Palhaço, locutor, caminhão, trapezista, chipanzé, adestrador, bailarinas e até um anão. As pernas deitadas do menino, sem força, saíram atrás do circo como se dançassem sem ritmo, acompanhando o leão. Viu, surpreso, o levantar das lonas, a arrumação do picadeiro, as jaulas, o cansaço, a tristeza dos animais. Havia uma identificação com algo que não conseguia explicar. Encontrou um colchão ao lado dos cavalos esmirrados e voltou a fazer o de sempre. A turma do circo, sem se dar conta da novidade, seguia sua rotinha de ensaios e do que chamavam de cuidados. Como naquela jaula nunca havia nada, nem ninguém, não davam comida ao menino e talvez por isso, o público começou a visitar aquela atração escondida nos fundos da lona, quieta, deitada, magra. Virou a sensação daquela temporada. Sua mãe, vendo o acontecido, aplaudia e dizia em voz alta: “Eu sempre soube que daria para alguma coisa!”

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Larvárias

Fui tomado por várias larvas, muitas, grandiosas, homem-bicho dentro em mim. As Larvárias me tocaram e sei que será para sempre.

Explicando o surto: hoje acabou o workshop de Máscaras Larvárias ministrado por Adriano Basegio e Daniela Carmona, Cia do Giro (RS), integrando a programação do FIAC Bahia 2009. Esta técnica tem origem em máscaras utilizadas no carnaval de Basel-Suiça e "foram introduzidas no universo teatral na década de 60 pelo francês Jacques Lecoq. Em 1996 fui fazer um curso de especialização na École International Philliphe Gaulier, em Londres, e estudei vários tipos de máscaras, entre elas aslarvárias, pelas quais fiquei encantada, já que elas nos remetem a um espaço poético e delicado. É difícil falar de sangue usando essas máscaras", explica Daniela.

Por ser do universo das sensações, este trabalho toca o mais profundo em nós e as reverberações não são imediatas, permanecem como efeito que pedra faz quando jogada na água. Entrar em contato com as Larvárias me atingiu de forma sutil, mas poderosa e estou grato aos deuses da arte por me possibilitarem este contato que nada mais é do que o contato com o meu próprio sutil.

Os exercícios de concentração, percepção corporal, escuta, sensibilização e atenção aos sentidos nos tiram do trivial, cotidiano e nos coloca num estado-corpo que é tão importante, mas pouco visitado. É uma pena que experiências como essa sejam de acesso predominantemente dos artistas, isso é uma experiência de vida que faria muita diferença nesse mundão de meu deus que anda tão acelerado.

As experimentações com as máscaras me marcaram profundamente, ver no escuro através do tato, olfato, audição... Transformar o corpo-cotidiano em algo sem forma precisa, sem descrever, sem fazer personagem e já sendo, sem tipo, me colocar a mercê da máscara ao invés de me esconder, me revela. Trabalho primoroso dos mestres.

Com ingressos esgotados, sexta e sábado tem apresentação da companhia no teatro Martim Gonçalves da Escola de Teatro da UFBA. Irei me deleitar com o resultado da pesquisa desses artistas de tamanha generosidade. Só quem é generoso pode compartilhar e enriquecer a vida do outro como aconteceu nesses dias. Evoé ao Giro!!!!!

*Fonte http://almanaquevirtual.uol.com.br

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Comemorando a minha vida

As contradições do corpo

Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta

Meu corpo, não meu agente,
meu envelope selado,
meu revólver de assustar,
tornou-se meu carcereiro,
me sabe mais que me sei.

Meu corpo apaga a lembrança
que eu tinha de minha mente,
Inocula-me seus patos,
me ataca, fere e condena
por crimes não cometidos.

O seu ardil mais diabólico
está em fazer-se doente.
Joga-me o peso dos males
que ele tece a cada instante
e me passa em revulsão.

Meu corpo inventou a dor
a fim de torná-la interna,
integrante do meu Id,
ofuscadora da luz
que aí tentava espalhar-se.

Outras vezes se diverte
sem que eu saiba ou que deseje,
e nesse prazer maligno,
que suas células impregna,
do meu mutismo escarnece.

Meu corpo ordena que eu saia
em busca do que não quero,
e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu
convertido em cão servil.

Meu prazer mais refinado
não sou eu quem vai senti-lo.
É ele, por mim, rapace,
e dá mastigados restos
à minha fome absoluta.

Se tento dele afastar-me,
por abstração ignorá-lo,
volto a mim, com todo o peso
de sua carne poluída,
seu tédio, seu desconforto.

Quero romper com meu corpo,
quero enfrentá-lo, acusá-lo,
por abolir minha essência,
mas ele sequer me escuta
e sai pelo rumo oposto

Já premido por seu pulso
de inquebrantável rigor,
não sou mais quem dantes era:
com volúpia dirigida,
saio a bailar com meu corpo.

(Carlos Drummond de Andrade: do livro Corpo, Ed Record, 1984)

Poema que recitei no enceramento do workshop de Elisa Lucinda e que posto hoje aqui para celebrar mais um ano bailando com a vida e suas poesias diárias.

domingo, 25 de outubro de 2009

Niver de Judite

Há 3 anos ela entrou em minha vida e me transformou. Alguns podem pensar que ela não existe, mas eu e muita gente sabemos onde ela se esconde e nos confundimos com ela. Já me levou por este mundão a fora e sempre quer mais. Finge não voar, mas ganha o céu e os corações de quem a conhece de perto. Aqui uma homenagem a quem faz parte de nossa vida e aos lugares por onde andamos.

Déa, Val, Edu, Fá, Dé Daltro e Sandrinha no Vila
Sandrinha, Rick, Deco e Déa lindamente para Ju
Jo, Rick e Deco musicando Ju no Vila 2007
Cela que cantou no Vila e na Sala do Coro as flowers para Judite e Kika ao fundo
Com Fafis que é parte da vida de Ju, na Sala do Coro
Na Sala do Coro com Cate, quando vencemos o Edital Quarta que Dança 2007
O início de tudo no Café Da Vinci, Judite com Val, Edu, Dina, Nei, Pa e Fau. Dia especial feito por cada um desses.



Aqui, um lindo texto feito por uma amiga muito especial:

A apresentação performática se desenrola diante dos meus olhos...

A minha mente, instigada pelo que vê e sente, me questiona todo o tempo do espetáculo.

Judite... o que é?

Quem é Judite?

Os sons, o canto, a música, a dança, a interpretação. Tudo isto e mais – a reflexão: precisamos voar.

Libertos das cascas, dos conceitos e preconceitos, precisamos voar cada vez mais alto sobre todos os obstáculos.

Judite... o que é?

Quem é Judite?

Do emaranhado da saia de Judite surgem objetos e objetivos.

Judite somos todos nós. Em todos nós Judite está e é.

Lave a alma. Chore de alegria. Edu/Judite, mais uma vez vai além, voa suplantando todas as expectativas.

Eu te amo Edu!

Volto pra casa ouvindo os Beatles. A minha Judite chora... saudades de 1967 – primeiro grande vôo...

Judite, quero continuar a voar !

Fátima Gaudenzi

Em 13 de abril de 2007.


* Faltou o registro com Márcia Castro, Thiago Carvalho, Danilo Novais, Poilana Bicalho, Clênio Magalhães que também fizeram Judite voar também

** Fotos de Célia Aguiar, Alessandra Nohvais, Rodrigo Melo, Catarina Gramacho, Nei Lima, Fabienne Frossart, Agnés Bertone, Flávia Motta, Rico Oliveira

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Nojo de vômito

Estou cansado de brigar sempre pelo mesmo assunto, pelo mesmo problema que jogam em minhas mãos como a brincadeira "batata-quente".

Em dois dias passei por situações semelhantes em dois eventos diferentes. Ontem fui convidado a participar de um colóquio sobre acessibilidade promovido pela Secretaria de Educação da cidade, chegando lá não pude subir ao palco porque os arquitetos não acreditam que pessoas com deficiência têm o que falar e os organizadores dos eventos não têm o devido respeito aos seus convidados e não providenciam meios de acessibilidade para facilitar suas vidas, acreditam que o velho jeitinho de arranjos é uma boa saída.

Me recusei a subir ao palco carregado e comecei me fala junto a platéia. Lógico que reclamei da falta de respeito e de forma sutil disse que todo o discurso de acessibilidade que se pretendia ali seria nulo, porque eles não cumpriam o que pretendiam num detalhe que faria toda diferença.

Hoje foi a conclusão do workshop de poesia falada que Elisa Lucinda ministrou esta semana na Faculdade 2 Julho e onde eu melhorei meus dias desde segunda-feira. Elisa faria uma palestra numa conferência sobre Direitos Humanos e seus alunos encerrariam sua fala recitando poemas de autores diversos.

Cheguei sabendo que já teria um problema pela frente que era a escada que levava ao auditório. O que eu não esperava era a falta de respeito e de preparo das pessoas que a frente da tal conferência. Para começar mandaram eu esperar embaixo, enquanto eu esperava chegou uma feladaputa dizendo para eu assistir no telão posto no refeitório, outra me perguntou se eu precisava de ajuda para subir e eu só cruzei os braços e olhei fixamente nos olhos, depois dois senhores me carregaram na cadeira de rodas e chegando ao topo da escada um me falou "tá vendo? já chegou!" como se tivesse sido a coisa mais natural e fácil do mundo, para completar outro coleguinha concluiu a noite: "pronto, o problema acabou!".

Não! Não, meu senhor! O problema acabava de começar! Com sangue na garganta e olhos marejados de tristeza e raiva eu tive que ouvir justificativas infundadas e explicações ridículas das pessoas daquela instituição. Pensei em desistir de falar meu poema, sair, me recusar a compactuar com aquilo, mas não, falei meu poema lindo de Drummond e ao término desrespeitei o protocolo, interrompi o coito e bradei:

Acessibilidade também é assunto de Direitos Humanos!

e gosto de dar nome aos bois para se envergonharem. A impressão que tenho é que as pessoas vomitam o belo discurso sem saber do que estão falando, sem compreenderem do que se trata realmente, acusando o outro, a sociedade. Não percebem que somos nós que fazemos a merda toda.

Eu morro de nojo de vômito.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Mar a vista

Pela primeira vez

Eu descobri

Você

Quando te vi

Me perdi

Não se vista

Foi um mar a vista

Foi a primeira

Foi amar a primeira vista

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A surpresa

Minha Judite ganhou um presente lindo e eu uma surpresa!

No dia das crianças, uma amiga me convidou para uma surpresa. Como havíamos nos prometido uma farrinha que nunca fizemos, achei que era a oportunidade e que a surpresa não era tão novidade assim.

Logo quando ela chegou com a turma para me buscar, vi que as coisas não seriam como imaginava, mas acompanhei o farrancho com alegria de criança, desconfiando do que viria.

Entramos na Livraria Saraiva e lá estava minha Judite em forma de estorinha para contar para crianças. Ana Luiza e Drica Rocha fizeram uma versão linda da minha lagarta que me enche os olhos até agora de emoção. Chapeuzinho lilás de feltro, cenário num avental colorido, borboletas que voam com as pipas, lagartinha laranja e as crianças e as crianças/adultos atentos à minha estória que já não era tão minha, havia se transformado em nossa. Transformação inerente à vida de qualquer lagarta.

A companhia de Diane (a convidadeira), Dan, Caco, Ana Amélia e Mateus completou a alegria. Pena minha mãe ter chegado à livraria e não ter sido informada onde ocorreria aquele momento de tanta delicadeza e arte e não ter presenciado a homenagem.

Surpresa boa danada!!! Presente que irá me acompanhar para vida toda. Vontade de compartilhar, colocar Lu no bolso e sair com ela para espalhar nossa estorinha pelos 4 cantos do mundo. Que mundo lindo ela me deu naquele dia. Em poucos minutos perdi todos os medos e minha Judite voou para os lugares mais belos: amizade, simplicidade, delicadeza, generosidade, cor, riso, alegria....

Vai, minha filha que este é o mundo que sonhei para você!

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Desculpe



Desculpe

Não tenho tempo agora

Eu estou de saída

Vou dizer ao mundo

Que o sorriso voltou

Para a minha vida

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Um sonho

Sonho um dia ver

Que é a faca quem sangra

Quando corta a carne

E que são os dedos que caem

No mal-me-quer das flores

Um dia a dor dói apenas

Em quem faz doer

E que cego, é na verdade,

Aquele que o remorso não vê

O mar, um dia, secará em mim

E o seixo é o coração

De um peixe ruim

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

domingo, 4 de outubro de 2009

O show da dança

Apero Impro Dance (França 2004)


Venho refletindo bastante sobre a dança, sua função, sua existência na vida das pessoas. Salvador é uma cidade altamente dançante. Os corpos ao se movimentarem constroem uma linda dança, coreografia, arte de rua. Então por que as pessoas não se interessam muito pelo produto dança? Por que os espetáculos de dança contemporânea não atraem outro público senão os próprios artistas da dança? Lógico que estou falando de maioria, não de exceções. Nem estou falando também de espetáculos produzidos por academias que exigem que suas alunas vendam os ingressos e se não venderem têm que comprar sua parte. Boa tática para ter platéia lotada e dinheiro no bolso.

Ontem uma amiga falou que não gosta de "show de dança". Hoje na revista Muito tem uma entrevista com Dulce Aquino, Diretora da escola de Dança, com colocações muito pertinentes. Durante o projeto Euphorico que participei junto ao Grupo X de Improvisação em Dança e Cia Artmacadam, conversamos muito sobre como atrair o público para nossas performances.

Muitos alegam não entender a dança contemporânea, assim como não gostam de trabalhos visuais abstratos, intervenções e instalações porque não entendem. Acham os trabalhos herméticos. Os abstratos até convivem mais harmoniosamente no nosso cotidiano porque combinam com o sofá, mas não se pode colocar um dançarino na parede ou embaixo da luminária para decorar a sala. Será que estou levando minha reflexão na direção certa? Não penso que seja função do artista fazer seu trabalho pensando num público ou em números, mas de que forma podemos popularizar mais a arte que não seja entretenimento? Há muitos trabalhos interessantes, importantes para uma reflexão da contemporaneidade (vida, homem, cidade, valores...) que ficam fechados sempre ao mesmo grupo. Adoraria que aquela moça que agora passa na esquina sentisse vontade de sair hoje à noite para me ver e chegando lá meu trabalho pudesse de alguma forma tocá-la e fazê-la refletir, ou então que a amiga que não gosta do show de dança se permitisse a experimentar estados diferentes de corpo e percepção.

Este post é apenas uma reflexão, sem imposições ou julgamento. Apenas querência. Acordei com essas questões e sem respostas, sem soluções.