“Vá dormir que o sono ocupa o estômago!”
De tanto ouvir sua mãe falar, o menino, que não tinha o que comer nem com quem brincar, decidiu viver na cama, em cima do colchão carcomido, lençol puído de tempo gasto. Por sorte não tinha problema gastro, apesar da barriga vazia. Sua mãe, ocupada nos afazeres diários, sem muita paciência para esta vida que se colocou a sua frente, não prestava atenção naquele menino deitado, quieto, desamparado.
Seu filho não viu as meninas de Zefa crescerem, nem podia saber se gostava de menina ou menino. Não sabia o que eram essas coisas, nem se havia outras coisas senão o sono sem sonho que alimentava seus dias. Vez em quando, de ano em ano, quando o menino fazia aniversário, sua mãe se empenhava em comprar alguma coisa e lhe preparava um café especial com manteiga no pão, leite e o biscoito que toda hora passa na televisão. De novela ela se ocupava. Da vida dos outros também. O menino então se vestia com qualquer roupa diferente das que dormia e sentava na porta da rua sem amigos, sem pipa, sem carrinho. Nem um bolinho para cantar parabéns. Nem um beijo desejando saúde, felicidades, essas coisas. O menino voltava para o quarto ao entardecer e se estendia sem pensar em nada, apenas em dormir para viver.
Foi numa época de calor infernal que uma barulheira na rua fez mudar seu destino. O menino chegou à janela sem vontade e viu a trupe que animava aquela tarde. Palhaço, locutor, caminhão, trapezista, chipanzé, adestrador, bailarinas e até um anão. As pernas deitadas do menino, sem força, saíram atrás do circo como se dançassem sem ritmo, acompanhando o leão. Viu, surpreso, o levantar das lonas, a arrumação do picadeiro, as jaulas, o cansaço, a tristeza dos animais. Havia uma identificação com algo que não conseguia explicar. Encontrou um colchão ao lado dos cavalos esmirrados e voltou a fazer o de sempre. A turma do circo, sem se dar conta da novidade, seguia sua rotinha de ensaios e do que chamavam de cuidados. Como naquela jaula nunca havia nada, nem ninguém, não davam comida ao menino e talvez por isso, o público começou a visitar aquela atração escondida nos fundos da lona, quieta, deitada, magra. Virou a sensação daquela temporada. Sua mãe, vendo o acontecido, aplaudia e dizia em voz alta: “Eu sempre soube que daria para alguma coisa!”
5 comentários:
confesso que tomei um susto com o final do conto! adorei.
Conheço bem essas fomes...
Nossa, surpreendente, tocante.
Sem comentários...
Lembrei-me da música O meu Guri de Chico Burque. Vou ler este teu texto para os meus alunos...
Interessantíssimo. Lembrei-me de muita gente...
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