terça-feira, 26 de novembro de 2019

Os livros que plantei

Lembro que a literatura sempre fez parte da minha vida cotidiana. desde criança eu adorava ler e escrever histórias. 

Aos 8 anos, fui internado no Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília e lá, uma das atividades propostas pela assistente social foi escrever um livro com texto e ilustração. Escrevi, então, "O rapto da primavera". Mesmo sem publicá-lo, considero meu primeiro livro, com único exemplar e produzido, inteiramente à mão.

Cresci escrevendo poesia, monólogos que foram encenados por atores. Aliás, minha primeira experiência em palcos soteropolitanos foi com meu monólogo "Aguarrás", no projeto Ato de 4, da Escola de Teatro da UFBA. Alguém lembra? "Relógio, porta, televisão, relógio, porta, televisão..."

Depois, vieram os blogs e eu alimentei o Monólogos na Madrugada com diversos textos, por muitos anos. Agora, ele continua aqui, mas está um pouco parado. 

Em 2013, lancei o que podemos considerar minha entrada profissional nas publicações voltadas para o público infantil com o livro e audiolivro Judite quer chorar, mas não consegue! Com esse projeto também me tornei editor, pois percebi a dificuldade de um autor novato ser considerado pelas editoras e também porque o retorno financeiro é muito injusto. Então, fiz meu cadastro como editor na Biblioteca Nacional e eu mesmo produzi meu livro com a parceria de diversos amigos que colaboraram para sua impressão através de vaquinha virtual. Foram 1.000 exemplares impressos com mais de 400 vendidos antecipadamente. A distribuição é outro problema, mas Judite fez tanto sucesso que esgotou a 1ª edição rapidinho.

Em 2015, lançamos o livro didático "Despertando Judite: experiência de criar e aprender dança com crianças", baseado num curso de dança que eu, Lucas Valentim e Fafá Daltro desenvolvemos para crianças.

O livro Bonito, surge em 2017, como parte do projeto onde também nasceu o espetáculo homônimo. Este livro surge da parceria com Lucas Valentim, William Gomes e Aldren Lincoln. O audiolivro desse projeto foi lançado agora em 2019, tendo a narração minha, Rudá Gome e Olga Lamas com audiodescrição de Iracema Vilaronga e JuniRo Almeida

Agora, no finalzinho de 2019, chega o Livro do X. Um projeto que vem sendo amadurecido há anos e surge em comemoração aos 20 anos do Grupo X de Improvisação em Dança, com produção artesanal de Diane Portella e parceria de inúmeros amigos que passaram e continuam sendo X.

Dia 06, faremos um pré-lançamento do livro, no Casarão Barabadá, às 19h, com performance do X e um chá para comemorarmos esse momento.



LIVRO DO X 

Organizadores: Edu O. e Fátima Campos Daltro de Castro 

Autoria: Aline Lucena, Ana Clara Santos Oliveira, Claudinei Sevegnani, Diane Portella, Edu O., Fátima Daltro, Felipe Sousa, Giorrdani Gorki Queiroz de Souza (Kiran), Hélène Charles, Hugo Leonardo, Iara Cerqueira, Natalia Rocha, Ricardo Mazzini Bordini, Victor Venas, Wilfrid Jaubert e William Gomes.

Projeto: Gráfico e Diagramação Diane Portella e William Gomes 

Tradutor: Guilherme Fraga

Editor: Edu O.

Revisão: Claudio Leite 

Ilustração: Claudinei Sevegnani 

domingo, 9 de junho de 2019

VOCÊ: UM OUTRO QUE O OUTRO NÃO É


Escrito por Edu O., Estela Lapponi e Wagner Schwartz, em 17/01/2014
Projeto 7x7 

PARTE 1 – O MOVIMENTO DE UMA PESSOA SERÁ SEMPRE DIFERENTE DO MOVIMENTO DE UMA OUTRA PESSOA

Passeando por uma avenida com meus amigos, eu precisava me desviar de alguns buracos e eles de outros. Edu não encostava os pés no chão, o espaço entre sua perna de rodas e a calçada deixava as fissuras imperceptíveis – embora ele sentisse, sistematicamente, os desvios que eu precisava fazer enquanto o empurrava. Estela saltava as rachaduras sustentada por seus dois outros braços de ferro.
No meio do caminho, meu pé esquerdo se prendeu por três vezes e, enfim, por uma quarta ou quinta vez. O lado direito de meu corpo compensava o peso do outro; em minha cabeça, se passava um monte de informações que buscava a minha atenção e a deles.
Caminhávamos, desavisados pelo desnível dos passeios que nos deixava sem equilíbrio, em um estado de risco, dependentes uns dos outros. Por vezes, voltávamos a falar sobre nossa amizade e sobre coisas que não interessariam serem escritas. Entre um momento e outro, o deslocamento voltava a ser um prazer, porque estávamos, os três, pensando ao mesmo tempo.
Se a viagem que fazíamos pudesse ganhar em qualidade, ela precisaria da ação de quem pode decidir sobre a pavimentação das avenidas e, também, sobre a qualidade de vida das outras pessoas – porque os problemas de uns podem ser, mesmo em suas diferenças, os problemas dos outros.
Edu, Estela e eu aprendemos sobre nossos direitos civis na escola. Do lado de fora, na relação com as coisas mais óbvias, experienciamos a falta desses direitos. Por vezes, os espaços se organizam na separação entre quem não precisa estar nas ruas e aqueles que só vivem se estiverem passeando por elas. Essa forma de ajuste dos direitos no mundo ajuda a manter os movimentos do emprego, das vendas dos livros técnicos e de autoajuda, do isolamento e da preguiça.
Alguém interrompe a nossa viagem para dizer que nossas diferenças são especiais, merecem uma atenção privilegiada. Considerando os desvios entre os universos do gesto e da palavra, aquilo que sobra se apresenta na forma de um discurso sobre a garantia das ressalvas, sem interjeição: meus amigos se tornam deficientes e eu, homossexual. Para cada qual, surge uma manifestação de oportunidade no mundo como a Dança Inclusiva e o Movimento Queer. Sem tomarmos conhecimento de uma distinção, passamos de cidadãos a vítimas.
Mesmo que as avenidas tenham, para cada uma de suas passagens, o seu argumento, existe para cada uma de suas partes, como também para os buracos: aqueles que os criam, aqueles que passam por eles e, ainda, a geração de quem os observa. Deixar de observar e passar a ser observado, sem chance para uma conversa, faz parte do movimento mundial das coisas que repudiamos. Claro, pensem o que quiserem pensar.
As coisas serão sempre assim, porque geram lucro. Mas, seria interessante, num presente próximo, se parassem de publicar o que pensam sobre a nossa condição em grande escala ou, ainda, pedissem informações mais precisas sobre qual é a situação – social, cultural, política, psíquica – que nos acompanha, como pedir licença para entrar na casa do vizinho. Isso evitaria o constrangimento de muitos.
Vivemos em um momento em que temos a chance de sermos como nascemos, da forma que nascemos sem imaginar que isso seria um risco ou deveria ser levado em consideração por pessoas que passam longe de nossa história. Se nossa forma de vida não causa nenhum significado para as vidas dos outros em particular, seria mais interessante pensar que passeamos por uma mesma avenida e que as adaptações precisam ser feita para todos, porque o movimento de uma pessoa será sempre diferente do movimento de uma outra pessoa. 
PARTE 2 – CADA PESSOA É UMA OUTRA PESSOA
Define-se corpo como uma estrutura humana. Ele nos identifica, nos coloca em grupos ou fora deles, nos transforma em seres perceptíveis, nos qualifica enquanto pessoas – cada qual com qualidades distintas, sem possibilidade de comparação.
PARTE 3 – UM CORPO A CORPO NAS IDEIAS
Recentemente, em São Paulo, ocorreu a Mostra Internacional de Arte +Sentidos. Um evento inédito que ofereceu acessibilidade comunicacional e arquitetônica para qualquer pessoa. Sua programação continha espetáculos de dança, teatro, performance e debates, encontros, workshops realizados por artistas com e sem deficiência. 
A Mostra foi realizada no Teatro Sérgio Cardoso e foi promovida pelo Governo do Estado de São Paulo, por meio das Secretarias da Cultura, dos Direitos da Pessoa com Deficiência e em parceria com o British Council, através da mostra UNLIMITED – Arte sem Limites (maior programa voltado à produção de trabalhos realizados por artistas com deficiência, lançado em 2009 pelo Comitê de Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Londres 2012). 
PARTE 4 – ESTELA LAPPONI
Considero a Mostra +Sentidos inaugural na história de São Paulo e, talvez, do Brasil, pois ela cria sua importância na extensa programação, na qualidade/quantidade de artistas e profissionais envolvidos e no teatro que a sediou propondo, em sua estrutura, todos os dispositivos de acessibilidade. Fiquei impressionada com a prontidão e organização dos profissionais que atendiam o público.
Como artista, foi importante conversar sobre a audiodescrição de meu trabalho. No exercício de uma edição, o lugar do outro se expande. Neste caso, Andrea Paiva foi uma excelente profissional, porque acompanhou cada detalhe de uma tradução.
+Sentidos possibilitou, também, a experiência do público com o próprio público: pessoas com deficiência visual, auditiva ou física puderam participar dos espetáculos, encontros, workshops de forma distinta. Pessoas sem deficiência puderam experimentar os dispositivos de acessibilidade para compreenderem como se davam as passagens de um sentido a outro, desse ou daquele modo. Pessoas com e sem deficiência se encontraram no evento, com direitos iguais.
O mundo acontece quando ele se especializa.
PARTE 5 – CADA PESSOA PODE SER
Esse foi o primeiro grande evento em São Paulo que tinha em sua programação trabalhos produzidos por artistas com deficiência. Outros eventos, com pequeno e médio porte, também existem no Brasil ou espalhados pelo mundo, mas os meios de comunicação social ainda insistem em dar, a cada um desses encontros, uma certa ideia de extraordinariedade. Em seus discursos jornalísticos prevalecem os “exemplos de superação”, a “lição de vida”, a “dança para todos” ou “a arte de outros corpos”.
Penso que nós, artistas com deficiência, alimentamos essa máquina. Talvez tenhamos começado a aparecer na cena de um jeito meio estranho. No séc. XVII, nos chamados freak shows (espetáculo de fenômenos), os artistas com deficiência ou com habilidades físicas excepcionais eram as atrações bizarras nos circos itinerantes e nas cortes. Nos tempos das monarquias e impérios, eram indigentes bufões da Idade Média.
Fosse como fosse, causávamos reações distintas no público. Com o tempo, pudemos decidir sobre apresentar-nos de outras formas, humanizando a nossa presença, expandindo as possibilidades de pensar o corpo e as suas diferenças.
Hoje, existem inúmeras companhias de dança, teatro, circo que possuem, em seu elenco, pessoas com habilidades diferentes, tanto no Brasil quanto no exterior. O International Festival of Wheelchair Dance (Festival Internacional de Dança com Cadeira de Rodas), ocorrido em 1997, em Boston, é o primeiro evento que reuniu oito companhias profissionais de dança contemporânea oriundas da Europa, América Latina e Estados Unidos. Dentre outras atividades, o evento promoveu debates entre os participantes sobre a nomenclatura dessa “nova forma de arte”. Chegaram em algumas proposições como: Dança de Habilidades Mistas e Dança Inclusiva. Hoje, a classificação “inclusiva” é cada vez mais presente em nossa cultura.
Uma proposta artística quando categorizada como “inclusiva” esclarece ao consumidor que ele terá condições de usufruir daquele produto/obra com todos os dispositivos necessários para compreendê-la e/ou que aquela forma de arte se trata de um trabalho realizado por artistas com e sem deficiência. Mas o fato do artista ser uma pessoa/corpo com deficiência, justificaria identificar o seu trabalho, seja em qualquer forma de linguagem, de arte inclusiva? O quê, em nossa época, definiria essas especificidades? Qual é a necessidade de informar aos públicos que aquilo que eles irão experienciar será feito por pessoas com habilidades diferentes? Cada qual carrega em seu corpo uma diferença que o define enquanto pessoa.
O que de fato quer dizer arte inclusiva?
Algumas manchetes relativas ao evento +Sentidos em São Paulo, reafirmaram o lugar da arte inclusiva, da mostra inclusiva e dos devidos achismos que provém dessa categorização. Sem mencionar os conteúdos que sobrepõem as deficiências dos artistas aos trabalhos feitos por eles, tornando-os heróis e vítimas daquilo que são, ao mesmo tempo, podendo produzir o áudio de fundo “óóóóó!!!” nas cabeças de certos leitores.
Na Mostra +Sentidos, em maior ou menor escala, os meios de comunicação social abordaram os artistas com deficiência tal qual os administradores dos freak shows. Se, naquela época, a forma de difusão dos eventos era brutal, pois divulgava os “extraordinários fenômenos humanos”; hoje, a relação entre mídia e espetáculo, em pleno séc. XXI, continua acentuando a curiosidade da massa, fortalecendo um processo de normatização ideológica vitimizador tanto para quem assiste ao trabalho, quanto para o próprio artista deficiente que se apropria dessa autopromoção, para conseguir seu lugar no mercado de trabalho.
O trabalho realizado por esses artistas, no entanto, ficou em último plano, esquecido. Perguntas como: porque você investigou esse tema em seu trabalho? Como você desenvolveu a dramaturgia de seu projeto? Como foi o seu processo de criação? Não foram feitas pelos jornalistas. E, se foram, terminaram editadas.
Esse tipo de assédio não é restrito apenas às mídias brasileiras e nem exclusivo às pessoas com deficiência. Existem formas de abordagens internacionalizadas sobre gays, negros, favelados ou mulheres, feitas por pessoas que se sentem naturais – que acreditam prescindir de dispositivos que as façam existir.
Em Londres, onde as discussões a respeito da deficiência se intensificaram a partir da década de 70, no surgimento do Disability Studies (que problematizou a deficiência não somente pelo viés físico e biológico, mas também pelas barreiras sociais, arquitetônicas, comunicacionais e atitudinais) é possível notar que os meios de comunicação social naquele lugar ainda utilizam o discurso de superação quando se referem aos artistas com deficiência. Essa forma estratégica de observar o outro, ficou evidente no material de divulgação das Paralimpíadas 2012 – que sobrepôs a foto dos paratletas ingleses com o slogan Meet the super humans(“Conheça os super-humanos”).
É recorrente ver associado às pessoas com deficiência, quer na área esportiva ou artística, às palavras “limite”, “barreira”, “superação”, talvez porque o lugar em que os deficientes vivem seja um espaço em que os dispositivos de locomoção ainda não foram adaptados para eles, mas para uma grande maioria. A vida não pode se tornar mais cara do que ela já é. A noção de deficiência, nesse caso, não estaria mais ligada ao que está do lado de fora de uma pessoa do que naquilo que constitui o seu próprio corpo?
Precisamos de mais eventos como a Mostra +Sentidos, que pretendem valorizar a produção dos artistas com e sem deficiência, mas precisamos questionar também o modo como o evento é divulgado, pois não aceitamos que nossos trabalhos sejam enquadrados em categorias das quais não nos sentimos representados, destruindo qualquer possibilidade de conectá-los à arte.
É claro que os meios de comunicação social não estão sozinhos na fabricação de piedades, superações e exemplos de vida. No caso da mostra em questão, o equívoco, talvez, esteja no próprio release, feito pela assessoria de imprensa, que especificou a deficiência de cada artista participante. Isso nos faz refletir sobre a ação dos curadores, produtores, organizadores. Será que eles não entendem que essa ação dificulta a entrada dos artistas deficientes em outras mostras, como qualquer outro artista, no momento em que estamos discutindo arte e não fisicalidades?
Seria produtivo eliminar a espetacularização de nossa existência e seguirmos em frente no que diz respeito à produção artística de qualquer um. 
PARTE 6 – DIREITO À DIFERENÇA
As Leis nº 10.048 (8 de novembro de 2000) e nº 10.098 (19 de Dezembro de 2000) garantem a acessibilidade. Elas já deveriam ter sido aplicadas em todos os espaços culturais (cinemas, teatros, museus, serviços públicos), não apenas em eventos em que pessoas com deficiência estarão se apresentando.
PARTE 7 – PESSOAS
Se o corpo tem diferentes definições e, por isso, formas infinitesimais de movimento; se um corpo é, também, uma pessoa e, portanto, toda pessoa é diferente uma da outra, porque a arte feita pelos artistas que possuem deficiência é insistentemente chamada como arte de outros corpos? Se substituíssemos a palavra “corpo” pela palavra “pessoa”, já que corpo é também uma pessoa, não soaria estranho dizer: “arte de outras pessoas”?
O outro é aquele que não é você.
Edu O. [www.monologosnamadrugada.blogspot.com.br] é integrante do Grupo X de Improvisação em Dança, desenvolve também projetos independentes e em parceria com outros artistas. Cursa o mestrado em Dança pela UFBA pesquisando as relações das políticas culturais brasileiras com a produção de artistas com deficiência. 
Estela Lapponi [www.zuleikabrit.blogspot.com.br] desenvolve projetos independentes – inCena 2.5 – e em parceria com outros artistas. Desde 2010 investiga, em diversas expressões, o termo que criou: Corpo Intruso. Idealizadora da Plataforma Acessolivre.

Wagner Schwartz [www.wagnerschwartz.com] Trabalha com arte contemporânea, dança e literatura, entre São Paulo e Paris. Seus projetos problematizam as relações artísticas e seu percurso.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Mais um dia divino!

"O sol ensolará a estrada dela..."



foto Marconi Araújo

Depois de 15 anos, retorno à Alemanha. Para mim, é muito significativo voltar apresentando a performance "Ah, se eu fosse Marilyn!"** que trata, exatamente, sobre a temporalidade das experiências, dos desejos, dos sonhos...

Interessante observar aquela pessoa com os olhos de agora, olhando para o que é o futuro daquele tempo. Em alguma medida, eu sabia que "daria certo", seja lá o que isso queira dizer. Mas, eu intuía que minha trajetória corresponderia aos meus desejos e, por isso, fiz tanto para que chegasse aqui.

Em Marilyn, busco refletir sobre "esse aqui", sobre o que nos tornamos, sobre as marés que nos trazem a esse instante que nos afoga de lembranças e anseios para o futuro que nunca saberemos como será.

Retomar este trabalho que comemora 10 anos, embora nunca o tenha abandonado, refletindo nesse corpo-pessoa que me tornei, mais envelhecido, pelos brancos, olhar entristecido e boca desejaste.

A boca que maquia, lambe, mastiga, engole. A boca que é um dos lados da ampulheta, assim como os que veem, piscam, cegam, adormecem, lacrimejam o mar. O mar que não é possível transportar, mas transbordamos de tanto mergulhar.

Não imaginava que o primeiro mergulho de Marilyn, em Itacaré, deixaria rastros tão fortes, como os vincos das rugas que envelhecem meu rosto quando eu sorrio e canto.

Mais um dia divino!***

*verso da música Dura na queda, de Chico Buarque, cantada por Elza Soares
**Performance apresentada no Tanz Begegnungen, em Karlshure/Alemanha
*** frase da peça Dias Felizes, de Samuel Backet


foto Álvaro Dantas

terça-feira, 12 de março de 2019

Bipedia Compulsória

O projeto "O Bicho, O Amigo e O Santo: olhares sobre corpos destoantes”, aprovado no Edital PIBIARTES 2018/2019 - PROEXT/UFBA, relaciona-se com minha pesquisa de doutorado, iniciada neste ano de 2019, no Programa de Difusão do Conhecimento, intitulada - provisoriamente -

"ATRAÇÃO POR UM CORPO PERTURBADOR: BIPEDIA COMPULSÓRIA E SEUS MECANISMOS DE PODER, DESEJO E REPULSA PELA DEFICIÊNCIA, NA DANÇA". 


Com esta pesquisa busco compreender as relações de poder que se estabelecem sobre as pessoas com deficiência, a partir do que pretendo desenvolver um campo conceitual que venho chamando de “BIPEDIA COMPULSÓRIA”. 

Bipedia não pelo fato de se andar com as duas pernas, mas a organização de mundo que só entende a existência a partir de um pensamento hegemônico de corpo que anula qualquer outra experiência corporal e provoca segregações, exclusões e violências.


foto Christiana Lima

Venho articulando essa pesquisa com minhas atividades docentes e de extensão, como ocorreu no dia 22 de fevereiro, com a Oficina Dança de Rainhas: Dança Afro e Deficiência. Nessa foto, estou dançando em minha cadeira de rodas, ao lado de uma estudante em pé e professora Marilza Oliveira ajoelhada, onde pesquisávamos - cada um à sua maneira - movimentos da Dança Afro que é uma dança criada e pensada para o corpo bípede e a verticalidade é predominante.

Em breve, eu e Marilza publicaremos um artigo onde refletimos sobre essa experiência e compartilharei, aqui, com vocês.

Percebo que esse termo "BIPEDIA COMPULSÓRIA", sobretudo "BIPEDIA" tem contribuído, nos espaços de reflexão, para o entendimento sobre as questões da deficiência e, sobretudo, sobre as questões das exclusões vividas por nós provocadas pela corporalidade bípede.

Como costumo brincar, falando sério, "vocês, bípedes, me cansam"!


terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Marilza Oliveira

Sempre falo que minha linha do horizonte são os umbigos bípedes. Sentado na cadeira, meu ponto de vista - prioritariamente - é a parte inferior dos corpos adultos andantes. Quem me olha, olha de cima e isso, provoca - talvez, semioticamente falando - superioridade e a mim, para essas pessoas, submissão. Se elas não se abaixam, meu olhar é como de menino pidão, de alguém inferior. Isso pode explicar, um pouco, a relação que se estabelece sobre as pessoas com deficiência. Não sei se existe algum estudo a esse respeito, nem se essa minha percepção está correta. Enfim…
Raramente vemos um bípede tentar deslocar seu olhar, ver o mundo sob uma outra perspectiva. Tão acomodados em seus padrões e suas opressões. Por essa razão, ver Marilza experimentar sua Dança com tentativa de outra corporalidade é revelador.
Marilza Oliveira, todo mundo deve conhecer, é uma referência na Dança Afro Brasileira, artista, pesquisadora, primeira mulher negra a se tornar professora efetiva, concursada, na Escola de Dança da UFBA, depois de 60 anos de fundação dessa instituição. Nosso concurso foi na mesma época - 2016. Lembro que, nesse momento, a Escola de Dança atraiu os olhares de muitas pessoas, da mídia, de outras instituições porque além da primeira professora negra, aprovada para ocupar a cadeira de Danças Populares com ênfase em Danças Afro-Indígenas, aprovava também o primeiro professor cadeirante. Sem dúvida, é um marco e “um salto civilizatório” como sempre afirma Profª Dulce Aquino. Desde então, eu e Marilza percebemos - mesmo dentro de todas as diferenças entre nossos trabalhos - muitas identificações que nos aproximavam.
Por isso, Marilza foi a primeira pessoa que pensei para mediar o bate-papo que se seguiria após a Oficina Dança de Rainhas: Dança Afro e Deficiência, ministrada por Josy Brasil e Graziela Santos, promovida pela ACCS Acessibilidade em Trânsito Poético que coordeno junto com as professoras Cecilia Bastos e Maria Beatriz (Bia).
Então, para mim, foi maravilhoso ver Marilza - verdadeira Rainha - durante toda a oficina, dançar fora do eixo bípede, experimentando possibilidades ajoelhada, sentada ou deitada, se deslocando pelo espaço, investigando o tempo musical na relação com os movimentos da Dança Afro nessas posições, tensionando questões de sua própria metodologia, provocando mudanças no seu próprio trabalho (como já havia vivenciado com ela em Araraquara e Pará quando viajamos, juntos, a trabalho) e na compreensão de técnica que não deveria ser algo rígido, datado, estático… realmente é transformador.
É um privilégio ser seu contemporâneo e ver uma profissional com a experiência de Marilza se permitir renovar, encontrar novas maneiras, surpreender. Nos ensinar com a grandeza daquelas raras Mestras que encontramos na vida. Axé, minha irmã!
#pracegover Descrição da imagem: Marilza de torço vermelho e vestido branco, experimentando movimentos da Dança Afro ajoelhada, ao lado de uma mulher em pé e um cadeirante de costas que também pesquisam os movimentos. Ao fundo, um homem de camisa branca e calça jeans ajoelhado na frente da cortina branca do espaço.


terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Fora da caixinha ou quando me vi ao ver Josy brilhar



Sempre me entendi artista, desde criança, e queria a cena, o palco, a tela... a única referência era a tv, pois em Sto Amaro não tinha teatro, nem cinema. Imagine o que é ser uma criança com deficiência, cheia de sonhos e não se vê no único espaço que tinha acesso. Não desisti do que era/sou e trilhei - cheio de dúvidas, receios, nãos - um caminho de muitos êxitos, mas ainda é difícil, para mim, não me ver - nesses espaços de representação - fora da caixinha do coitadinho.
Sei que estou monotemático essas semanas, mas é tão importante isso que está acontecendo com Josy Brasil que as suas conquistas também são nossas. Quando Josy é coroada, essa coroa toca em todas as mulheres com deficiência consideradas feias, abjetas, assexuadas, indesejáveis; quando Josy é coroada, essa coroa nos toca porque afirma, em algum cantinho de nós, que também é possível, que também temos poder, que podemos ter as mesmas oportunidades, é só a bipedia deixar sua arrogância de lado e nos olhar como somos e Josy é linda, esplendorosa, uma verdadeira Rainha que o Muzenza soube reconhecer. 
Hoje, quando assisto Josy na TV, lembro daquele menino que queria se ver e choro porque aquele menino poderia ter desistido de ser o que é, choro porque é muito perversa a construção do corpo ideal para ser Rainha do Ilê, para ser âncora de telejornal, para ser dançarino e os grupos de Dança, coreógrafa/os, professora/es e as próprias Escolas de Dança são tão excludentes, preconceituosa/os...
Por isso, desde o concurso do Ilê, quando Josy nem passou para a fase final, eu achei muito corajosa sua atitude de invadir esses espaços e desejei me aproximar dessa mulher. Então, combinamos dela, junto com Graziela Santos (minha querida amiga que colaborou na sua preparação para Rainha), fazerem uma oficina no primeiro dia de aula da ACCS Acessibilidade em Trânsito Poético, componente curricular que eu coordeno ao lado de  Cecília Bca e Maria Beatriz, no dia 22/03, das 13h às 16:30, no Teatro do Movimento, integrando a programação da Semana Inaugural da Escola de Dança da UFBA.
Espero que vocês tenham a dimensão da importância de ter a presença de Josy dando aula de Dança Afro, na Escola de Dança da UFBA! 
Ver Josy brilhar é uma catarse! É curar algumas feridas que nunca cicatrizaram.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Judite chorou!

Ilustração de Clarice Cajueiro para o livro 
Judite quer chorar, mas não consegue! (2013)


Judite, hoje, chorou!

Inesquecível o momento de agradecimento, ao final de uma apresentação de Judite, no Teatro Vila Velha, em que Saja não continha a emoção e chorava copiosamente. Naquele instante, eu não conseguia olhar para outra pessoa e não conseguia deixar de compartilhar aquela emoção com ele. Ele que havia me ensinado a ver o belo, que sinalizava a borboleta passando pela sala de aula como uma confirmação do que acabara de falar, uma folha caindo da árvore e a história de sua Clara Luz... Ele que me acompanhou em quase todos os trabalhos. Adorava o artesanato de mainha. Ele que me incentivou, vibrou quando passei concurso para a Escola de Dança e dizia ser a UFBA a Universidade que ele acreditava pq agora tinha um professor de Dança como eu. Meu amigo afetuoso e mestre. Que falta você fará. Obrigado pelo olhar e pelas palavras para Judite. Agora, todas as borboletas serão você! 

"Tenho certeza de que Judith Quer Chorar Mais Não Consegue é um momento de grande inspiração neste começo de milênio: é imprescindível, como nos diz Garaudy, não apenas viver a vida, mas, sobretudo, ter a ousadia de dançá-la com uma força tal capaz de fazer crer que há sim um outro mundo possível, um mundo mais forte e justo, muito mais belo e verdadeiro e mais: que é possível vivenciá-lo em toda a sua plenitude.
Edu é, ele mesmo um testemunho vivo, decisivo para a compreensão desta equação: a sua capacidade expressiva é tal que não consigo vê-lo de fora do anuncio de um novo tempo!"
14.07.07
Saja



quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

O que aquece o coração

Quando o email começa se tornar baú de lembranças. Um achado de Abril de 2012. Recordações que aquecem o coração.



*Era uma noite muito bonita: parecia com o mundo*.* Foi assim que percebi aquele dia em que a noite não escureceu em meus olhos, ou melhor dizendo, em que eu não vi a noite. Ou será o dia que não teve noite?

Partindo de Londres à China esperei a noite cair e ela não caiu. O tempo todo claro e então me dei conta de que estava adiantando o dia, avançando a ampulheta. Parado naquele avião que voava em velocidade assuatadora assisti
a dois filmes, terminei um livro, li dois textos para o mestrado, escrevi coisinhas e pensei... Eu estava nas nuvens! Viajando com a Candoco Dance Company para apresentações em Xangai e Pequim. Eu estou do outro lado do mundo e às vezes me sinto tão em casa, porque é o mundo onde habito.




Hoje será nossa primeira apresentação em terras chinesas, no Shanghai Lyceum Theatre. Pensando que em minha terra estamos comemorando o Mês da Dança, me sinto mais próximo dessa comemoração. Estou dançando o mês inteiro, entre ensaios e apresentações. Há maneira melhor de comemorar do que realizando seu ofício? Do que compartilhar sua arte com o mundo?

Engraçado pensar na distância e no tempo. Há 10 anos eu conhecia o Candoco. Há 10 anos venho alimentando o desejo de estar com eles, de fazer parte desta equipe. Tempo distante. Alguns afirmam que 10 anos é um período
cíclico. Estou começando a fechar essa etapa que finalizará em Setembro, nas Olimpíadas Culturais. E tudo que ganhei, toda experiência vivida, todo amadurecimento valeu a espera da noite. *E quando tudo começou a ficar inacreditável, a noite desceu.**

Daqui seguiremos para Pequim, para mais duas apresentações sexta e sábado. Infelizmente alguns sites são bloqueados na China e não posso acessar meu blog, nem o facebook para postar fotos do lugar.

Um beijo em todos. Obrigado. Partindo para o teatro, às 10:20h de terça, aí ainda é noite de segunda, né?.

*Trecho do livro Uma aprendizagem ou o livro dos saberes - Clarice Lispector
Edu O.