domingo, 26 de julho de 2020

A mesa de café

Não lembro de ter tido um dia na vida em que a mesa de café não estivesse posta, pronta a todo momento. Quente-frio sempre cheio, torradinhas finas feitas na faca velha, amolada em pedra do quintal, bolachinha cortadeira no pote, manteiga, leite em pó e açúcar. Quatro cadeiras ao redor da mesa de madeira preta bem grossa talhada. Os passos pequenos no corredor, tateando a parede de olhos cegos, bebendo chá mate pensando ser café, mergulhando as torradas no líquido quente, chupando o caldo que escorria pelo queixo.
O outro vinha com carinho, limpando o rosto com guardanapo, arrastando também os pés cobertos de meia, enfiados numa sandália de couro velho, sentava do outro lado da mesa e tomava seu café, olhando para aqueles olhos que não mais o exergavam. Ela aguardava ele anunciar o fim da refeição e seguiam juntos para o sofá onde descansavam um pouco antes de dormir.
Os mais novos chegavam tarde e completavam a mesa que já estava vazia sem eles. Ainda hoje é assim... a mesa continua vazia, sem os mais velhos, sem os mais jovens, na esperança de um dia alguém gritar na grade pedindo para abrir a porta que não abrirá nunca mais. Nunca mais. A casa foi vendida com tudo dentro, inclusive com eles que não estavam mais ali.
A minha vó Zinha, meu avô Ismael, à criança e adolescente que fui quando tinha a sua companhia, à minha cidade Santo Amaro que parece também não estar mais ali.
#pracegover: Na imagem quadrada, 3 fotos: Edu bebê de fralda, brincando no canteiro central de uma rua; atrás de uma pilha de livros foto de Edu adolescente com o avô sorrindo em frente a uma janela azul aberta; avó Zinha em pé numa igreja com vestido azul escuro, cercada de pessoas.

Republicação de um texto postado no blog em 03 de julho de 2011


quinta-feira, 23 de julho de 2020

Monólogos numa quase longe madrugada

Monólogos na Madrugada é meu blog, este blog, que existe há muitos anos iniciado para publicar textos que eu escrevia nas madrugadas e, muitas vezes, ouvindo Adriana Calcanhotto e bebendo o resto de um whisky esquecido num carnaval. Todo mundo dormia e eu chorava amores não vividos, saudades do que não vivi, dramas de uma juventude quase adolescente. Escrevi o principal monólogo - Aguarrás - para meu primeiro amor gay, foi tb a minha primeira experiência de palco em Salvador, mesmo antes de dançar.

Agora, ouvindo Adriana enquanto bebo sozinho no quarto, com a mesma luz difusa de uma luminária me fez lembrar de quando eu era jovem, embora a barba branca me lembre que estou aqui.


domingo, 19 de julho de 2020

Projeto OXE: literatura baiana contemporânea

Sto Amaro chamou, eu vou! Amanhã (segunda-feira), 20/07, 16h, estarei numa live pelo insta @eduimpro junto com o @projetooxe 
Tão feliz com esse convite do OXE: literatura baiana contemporânea (Projeto de Extensão do IFBA Campus Santo Amaro) para falar da minha produção literária! 
Muito bom lembrar minha relação com a literatura. Desde criança eu gostava de ler e escrever. Pensando no que poderia apresentar nessa conversa que terei com Rodrigo Carvalho, as memórias vieram com força e alegria:
O primeiro livro publicado Palavra de Estudante - projeto da Escola Prof. Gustavo Viana com redações dos seus estudantes (alguém que estudou no Gustavo ainda tem esse livro?); 
as poesias que escrevia na adolescência;
os Monólogos na Madrugada que publicava no blog e tornou-se um espetáculo de teatro, música e dança; 
depois os livros infantis "Judite quer chorar, mas não consegue" com ilustrações de Clarice Cajueiro
"Bonito" escrito com Lucas Valentim e ilustrações de William Gomes e Aldren Lincoln.
o "Livro do X" (sobre os 20 anos do Grupo X de Improvisação em Dança) que organizei em parceria com Fafá Daltro, produzido por Diane Portella e William Gomes.
Eu havia esquecido do Despertando Judites: experiências de criar e aprender dança com crianças que escrevi junto Fafá Daltro e Lucas Valentim.
Ainda lembrei da minha primeira história "O rapto da Primavera" que criei quando estava internado no Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília, aos 8 anos... tantas lembranças!
Imagens do flyer de divulgação da live, capa do livro de Judite, Grupo X, Despertando Judites e video com página e auidobook Bonito 





quarta-feira, 1 de julho de 2020

Carta aos bípedes #2 - com LIBRAS


Salvador, 29 de junho de 2020

Carta aos bípedes,

Senta aqui porque precisamos conversar. Você, talvez, não se dê conta, mas você é bípede. Sim, se você não possui nenhuma deficiência e é parte da categoria de pessoas construídas dentro de padrões normativos de corpo que consideram as experiências da deficiência como patologia; se nos olha com sentimento de pena, compaixão, coitadinho; se considera a pessoa com deficiência menos capaz, menos bela e improdutiva; se considera a deficiência como se fosse uma experiência única que se repete da mesma maneira para todas as pessoas e desconsidera a grande diversidade das deficiências e suas especificidades, além dos contextos pessoais, você é bípede. Se a sua inclusão quiser nos colocar nos cercadinhos específicos que mais excluem, sim, você é bípede. Se entende que o corpo sem deficiência é a única possibilidade de normalidade, sem dúvida, você é bípede.

Deixa eu te explicar logo que a bipedia, na minha perspectiva, é essa estrutura sócio-economica-cultural-política que determina o que é normal e o que é anormal, capaz e incapaz. O que apresento como bipedia não se trata da maneira de andar, é sobre o sistema de opressão pautado numa construção também histórica da normalidade, assim como é construída a ideia de deficiência.

Por exemplo, eu vou falar da Dança porque é minha área de atuação, mas faça um esforço e pense a partir do seu contexto. Você é bípede se a sua Dança desconsidera as possibilidades de diversos corpos e não se dá conta das limitações da própria bipedia que ao longo do tempo repete tantos clichês de uma verticalidade e virtuose tão redutoras sobre o que é dança e corpo; se nas suas escolhas estéticas, artísticas e, portanto, políticas, você mantém e reproduz espaços de invisibilidade e não reconhecimento da produção de artistas com deficiência; se na sua curadoria você não se dá conta de que o tema secular da Dança é o corpo branco-cisgênero-bípede que você teima em perpetuar na programação de seus festivais, bienais, eventos e não faz a mínima questão de romper com esse padrão e ainda nos mantém nas atividades extras, nas suas ações formativas que você nem participa e nas mesas de debate como um assunto que você também não quer ouvir; se em suas aulas você nem pensa nas pessoas com deficiência e quando aparece alguma ela que se vire porque “meu grand jeté é lindo demais para eu não mostrar”; se na sua produção você não se importa com a acessibilidade e até descumpre o que determinam as Leis brasileiras se justificando com falta de verba, mas também não luta para que os espaços culturais se responsabilizem com os equipamentos ou haja nos orçamentos dos editais ou ferramentas de fomento à cultura uma rubrica, específica, destinada à acessibilidade para todos os projetos. Você sequer pensa nisso e, no fundo, acha muito trabalhoso; se você for jornalista, continua insistindo no tom sensacionalista em matérias que nos tratam como nos antigos freak shows. Você entende? O pensamento bípede está em todo canto, domina todos os espaços e nos invisibiliza, nos recusa. 

O que falar então das suas novelas contando a vida da classe média branca bipede brasileira tão monotemáticas e enfadonhas sobre romances que você supõe que eu nunca poderei viver? Ou seus filmes, seu teatro, seus musicais que nunca nos representam. Posso te contar? Quando eu era criança sonhava em ser o protagonista da novela das oito, a TV era minha única referência no interior da Bahia, eu vivia sempre no mundo da lua com Emilia, o Saci e a Cuca… chegava até a contracenar, em casa, com Fernanda Montenegro, Malu Mader, Lidia Brondi… Mas eu não me via e ainda não me vejo nas telinhas, telonas, no seu palco tão bípede. Por isso decidi fazer Belas Artes na UFBA para tentar me manter artista como eu sempre soube que era. Depois, fiz umas aulas na Escola de Teatro e acabei na Dança onde estou há 22 anos, mas isso é uma longa história que posso te contar depois. Você, talvez, nem se interesse.

Eu queria mesmo entender quando você pensa em Dança, qual o corpo pode dançar a sua Dança? Quem pode fazer a tua arte? Quem pode assisti-la? Se todo corpo é a própria pessoa, pois não existe corpo isolado da pessoa, que pessoas cabem na sua caixinha? Quem você deixa fora? O que você pensa sobre deficiência? Quais as palavras você associa à deficiência? E quando pensa na relação Dança e Deficiência ou Arte e Deficiência, quais as imagens que surgem? Que referências você tem sobre o tema? E se você não tem nenhuma referência ou segue o senso comum, como se arvora a julgar nossa competência e produção? Você, provavelmente, nem conhece Estela Lapponi, Cia Gira Dança, Moira Braga, Mickaella Dantas, Dave Toole, Annie Hanauer, Dan Daw, Claire Cunningham, Carolina Teixeira, Natalia Rocha, Leo Castilho, João Paulo Lima, Jéssica Teixeira, Candoco Dance Company, entre tantos outros. Você sabe tão pouco sobre tanta coisa! Só para te lembrar, bípede, Frida Kahlo, Stephen Hawking, Franklin Roosevelt eram def. Pasme, bípede, mas o REI da música brasileira é def, sabia? Talvez, se ele tivesse assumido de fato essa característica você não o considerasse tão rei assim, não é? Espero não ter te decepcionado, mas no nosso caso, somos reis e rainhas que sempre estamos nus. Vocês nos olham e só enxergam o que acham ou querem achar sobre nossos corpos. Sobre nós.

O buraco é mais embaixo... e as rodas da minha cadeira não conseguem atravessar. Vocês sempre criam buracos para eu não me aproximar tanto de vcs. Vai que a deficiência pega, ne?! Aliás, o buraco é mais em cima, abissal, como diz Boaventura de Sousa Santos, estabelecendo quem pertence e quem não pertence a um determinado lado da linha que vocês inventaram para criar hierarquias e espaços de poder sobre quem está autorizado a falar e quem deve silenciar ao longo da vida, subjugado às suas ordens. Você, bípede, nos prende no quartinho dos fundos para esconder aquilo que revelamos sobre vocês mesmos. Vocês tem medo de nós.

Vou te contar uma história que li no livro Holocausto brasileiro - Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil, de Daniela Arbex. Antônio foi internado no manicômio de Barbacena e passou vinte e um anos em total silêncio, era considerado mudo pelos funcionários do local. Um dia, Antonio soltou a voz ao ouvir uma banda de música. Todos se espantaram e perguntaram porque ele não tinha informado que falava. Ele, então, responde: uai, ninguém nunca perguntou.

Pois bem, vocês também nunca me perguntaram, mas eu não silencio e repito incansavelmente: VOCÊS, BÍPEDES, ME CANSAM!

Sem dúvida não conseguimos desconstruir e destruir estruturas tão fixas assim. O pensamento bípede é da nossa estrutura social, molda e limita a compreensão de corpo e de mundo que anula qualquer experiência fora do que é considerado normal. Essa normalidade não existe, bípede. Acredite em mim! Repense, reveja, mude esses conceitos. Não dá mais para você continuar vivendo montado em tantos privilégios. Sabe por que? Eu percebo um vento que vem de longe para soprar - quem sabe - alguma mudança. Nós - pessoas com deficiência - estamos ocupando espaços, furando algumas bolhas. É da ordem do existir mudarmos quando entramos em contato com o outro, nos perturbamos com o desconhecido ou, nesse caso, nem tão desconhecido assim, mas justamente por ser tão conhecido nem nos damos conta. O encontro… o contato… transformam.

Agora, falo aos meus pares, esses “corpos intrusos”, como diz Lapponi, que chegam sem pedir licença, invadem onde não foram historicamente chamados e rompem tudo desde a arquitetura até as atitudes, a comunicação, a tecnologia… “corpos intrusos” que instigam, incomodam, coçam o meio das costas, furando essas bolhas para afirmar o que somos e rejeitar padrões impostos. Jamais esquecer de que quando entramos nos espaços os transformamos. Experiência vivida não se apaga. Ninguém fala por ninguém, ninguém fala por nós, mas podemos compreender o universo do outro e tentar criar junto com ele. Lembremos sempre do que Djavan canta: “voar… é do homem”.

Eu te escrevo, bípede, não para aumentar os abismos que tantas vezes vocês nos jogaram desde a Grécia antiga, mas para criarmos pontes, para vocês se darem conta das violências que provocam cotidianamente, até mesmo no tratamento que pensam ser carinhoso, mas vem carregado de compaixão, pena. Eu sei, alguns de vocês nem sabem.

Mas, olha, se já havia passado da hora da mudança, não será este o momento para transformarmos nossos hábitos de consumo, romper padrões que criamos, repetimos e nos determinam o que é belo, o que é produtivo e capaz? Quando sairmos desse isolamento que vocês bípedes estão achando uma novidade, mas que para nós - pessoas com deficiência - é uma condição imposta rotineiramente pela falta de acessibilidade e oportunidades, o que vai importar? Quais vidas importam? Umas mais outras menos? 

Você até aparece defendendo causas com certa visibilidade, mas quando te chamamos para falar sobre nós, você se esquiva, diz que está muito ocupado, sem tempo e sem dinheiro. Na verdade você nem lembra da nossa existência. Na sua luta anti qualquer coisa e em defesa da vida, você pensa na vida da pessoa com deficiência? Se não, bípede, me desculpe te desapontar, mas eu não acredito na sua luta. Sabe por que?

Porque o corpo com deficiência é futuro. Tenho repetido isso incansavelmente. A experiência da deficiência é um porvir constante para qualquer pessoa sejam mulheres, homens, negras, indígenas, transsexuais, cisgêneras, gays, lésbicas, assexuadas… se não por alguma surpresa do destino, pela própria vida. Sim, quando envelhecemos é porque nos mantemos vivos e o envelhecimento é companheiro da deficiência. Entender o corpo com deficiência como futuro é pensar na contribuição que estudos da deficiência tem trazido para diversas áreas da ciência, desde estudos da medicina, quanto robótica, tecnologia, comunicação, artes… enfim, pensar por outra via, pensar dialogicamente, desconstruindo uma perspectiva de subalternidade da deficiência. Se todo mundo pode vir a ter deficiência, não seria melhor construirmos um mundo a partir dessa realidade?

Pelo futuro que já é agora, desejo que nós, pessoas com deficiência, ocupemos espaços de visibilidade porque somos multidão. Tentar quebrar as barreiras impostas pela normatividade deve ser o que nos faz mover e mostrar essa história ainda pouco contada e quase nada acessada por grande parte das pessoas. Para mim, isso é o que me faz existir nesse passado-presente-futuro-AQUI

Até breve,
Edu O.



Edu O. é artista da dança, performer, professor da Escola de Dança da UFBA, mestre em Dança, cadeirante, gosta de escrever e criar conteúdos no seu Instagram @eduimpro alertando para as exclusões e violências provocadas pela bipedia compulsória, termo que desenvolve - atualmente - no Doutorado Multiinstitucional e Muldisciplinar em Difusão do Conhecimento.

Tradutor/Intérprete de LIBRAS: Atanael Weber