segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Carta a quem já me matou - com Libras





Salvador, 19 de agosto de 2020

Carta a quem já me matou,

Você, talvez, não saiba, mas eu já morri mais de 100 mil vezes e continuo morrendo. Muitas pessoas me mataram e continuam matando, diariamente, sem sossego, sem um minuto de paz. Eu falo como pessoa com deficiência. A história comprova, não é preciso muito esforço para saber dos abismos da Grécia antiga, das comunidades indígenas que nos enterram vivos, da Inquisição que nos queimava para pagar o pecado que nosso corpo carrega, do abandono em manicômios, da esterilização para não procriarmos, do projeto eugenista, do holocausto nazista, do Holocausto brasileiro, do silenciamento, da invisibilidade, da negação dos nossos direitos e acesso à educação, comida, cultura, saúde, lazer, trabalho, salário… Das condições de miserabilidade que a maioria de nós enfrenta. Do apagamento e não reconhecimento das nossas capacidades, contribuições que damos para diversas áreas, das nossas ausências em espaços de decisão e poder, na política. Das agressões domésticas, dos abusos sexuais, das estatísticas de violência  alarmantes que sofremos sistematicamente.

A História parece distante, mas - talvez - você também não saiba que a História  é agora, nós somos parte dela e a constituímos. Não é algo fora, tecemos sua trama em continuidade absoluta. É importante olharmos para o que nossos ancestrais viveram, criticar a narrativa construída por pessoas brancas-cisgêneras-heterossexuais-bípedes, mas prestar atenção nas brechas do que nos contam porque se parece estarrecedor o que desejaram revelar, imagine o que ficou escondido?

Estamos em meio a uma pandemia que assola o mundo inteiro. Aqui, no Brasil, já morreram mais de 100 mil pessoas. Algumas respeitam o isolamento imposto para controle de contágios da Covid 19, mas outras tantas não suportam sua própria companhia e continuam vivendo como uma Sessão da Tarde “Curtindo a vida a adoidado” e se lixem as pessoas que precisam, de fato, sair para trabalhar. Se lixem as famílias que perderam seus entes, se lixem os mortos que já estão mortos mesmo, mas eu preciso ver o mar, dar parabéns a meu pai, visitar aquela amiga, tomar uma cervejinha escondido num bar de portas fechadas, queimar uma caninha com poucas pessoas, correr na orla porque isso também é cuidar da saúde… é tudo tão rapidinho, em horário que não tinha quase ninguém na rua. Por que a sua urgência - nem tão urgente assim - é mais importante do que a do outro que você critica julgando o comportamento do gado, do presidente, seus projetos descabidos para não controle das mortes? Você acredita que você contribui para tantas mortes? Não, ne? Deve ser exagero meu, afinal, você só está matando aquela vontadezinha rápida.

Sim! Deve ser exagero meu. Eu que estou desde 12 de março confinado a um quadrado de colchão sem perspectiva de poder matar minhas vontades e, talvez, morra por aqui mesmo diante de tanta gente que pode exercer seus desejos num momento de tragédia.  Sem o mínimo remorso. 

Recentemente, foi aniversário de meu sobrinho e eu cancelei uma operação de guerra que faria para tentar estar com ele durante 5 minutos, vendo de dentro do carro. Para mim, é impossível matar minhas vontades pq a cadeira de rodas só funciona numa relação direta com as minhas mãos que precisam pegar onde ela vai passando. No dia seguinte ao seu aniversário, meu sobrinho e minha irmã vieram nos ver e não passaram da porta pq temos uma mãe/vó idosa e eles podem matá-la se for contaminada, além de mim que também posso morrer por sua causa, pois também preciso comer, tomar remédios e as compras chegam em casa. Com a cidade cheia, alguma coisa pode chegar contaminada e ai, “adios, amor, yo vou partir, desta vez para sempre”… Fico desesperado qdo vejo vcs felizes exercendo suas vontades pq isso significa mais tempo eu num canto de colchão. Desculpe o desabafo, mas acho que não estamos em tempo de festejar. 

Você compreende que a abertura do comércio, dos bares, shoppings, academias, das ruas, enfim… é uma determinação do mercado? A pandemia não acabou e está se agravando e eles não estão preocupados com nossa vida. Você, inclusive, segue bem o script que eles roteirizam para seguirmos. Deve ser isso o que vocês chamam de “novo normal”. Não é porque o governo determinou abrir que você é obrigado a sair. Sua obrigação é cuidar para que profissionais da saúde, da limpeza, do transporte público e dos serviços essenciais não morram porque você não suportou ficar em casa, nesse isolamento que nós - pessoas com deficiência - conhecemos desde antes da História começar a ser contada. Dessa morte que alguém nos impõe incessantemente. 

Você, talvez, se pergunte: o que eu tenho a ver com isso? Você quer mesmo que eu te responda?

#pracegover A cor do video já está desbotada, sépia, assim como a minha graça, meu encanto, o brilho dos meus olhos. Trancado no meu quarto, desde Março, visto uma camiseta listrada. Além de meu marido e minha mãe que me acompanham nesse isolamento, pesam nas minhas costas a companhia de coisas: livros, objetos variados, imagens de orixás e santos. Atanael Weber, no canto inferior direito, de camiseta vermelha, me auxilia para ampliar o que eu quero gritar ao mundo fazendo Libras.

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