quarta-feira, 8 de junho de 2011

Olhares cruzados e expandidos (uma análise de Fafá Daltro sobre Odete)





Salvador 29 de Abril de 2010

Odete, Traga meus mortos.

Odete! Traga meus mortos, um espetáculo que trata das relações e trocas de experiências vivenciadas entre os coreógrafos intérpretes Edu O, e Lucas Valentim. Especialmente compartilhado com o público, a dramaturgia cênica traça uma trajetória que tem como sustentação a simplicidade do pensar fazer dança com delicadeza, sem excessos, num caminhar com calma como se fosse um dia ensolarado. A obra expõe num diálogo aberto e convidativo, seus modos de reconhecimentos nascidos das impressões entre seus corpos (entendidos aqui como corpomídia), e tendem a operar dentro de um processo permanente de troca de informações. Com olhares cruzados e expandidos, seus movimentos e histórias invadem e espalham-se pelo ambiente cênico contaminando a tudo e a todos, deixando-nos a vontade. Somos assim arrebatados, deslocados para o território da ficção, das mais variadas facetas da vida cotidiana e corriqueira dos autores, seus amores, humores e cumplicidades desnudados. Contaminados somos por suas fisicalidades estendidas, seus corpos idéias, e sentidos por onde passam. E tão perto estão dos nossos corpos que podemos usufruir dos mesmos sentimentos que exalam por onde transitam. Estamos implicados na cena. Um convite amistoso e provocativo se faz ouvir...,  quem quer tomar um cafezinho com a gente?,  Um suco? Quer contar alguma coisa?, ou, quem sabe dividir suas memórias, seus segredos? Tudo toma um ar de intimidade, de uma conversa entre amigos num fim de tarde. O entrar e sair da realidade, se faz sutilmente. Vivemos o intricado mundo visível e invisível do imagético. O público é convidado a participar da cena, complementado-a, colaborando com a sua feitura. Dessa forma, as fronteiras público espectador se rompem para dar lugar a um ambiente de compartilhamento. Pouco a pouco, o público sensibilizado, vai se aproximando para sentar ao redor da mesa (um pano estendido no chão), contando suas próprias histórias, provando cafezinho, bebericando suco, chá. Assim, colaborativamente, a mesa antes apenas com dois lugares se multiplica para acolher os convidados, totalmente contextualizados no espaço cênico. Esse novo formato da cena cria, estabelece uma dinâmica rica de trocas de pensamentos  e experiências vivenciadas, que se assemelham a um encontro festivo entre amigos (ausentes/mortos) de Odete. As cenas dispõem-se em diversos quadros, ora acentuando acontecimentos do passado, e em outras, suas releituras no momento presente, atualizando-as e modificando-as. Gradativamente e sorrateiramente um tecido poético começa a emergir impulsionado pelos diálogos corporais construídos pelos dançarinos e em acordos com o público presente, agora co-autor. A estética do espetáculo aporta ações colaborativas, ou seja, para uma melhor contextualização da cena há a necessidade da interferência do público, embora seu acontecimento possa ocorrer sem a atuação do público, o que consequentemente, daria outro colorido a cena. Várias dinâmicas dramatúrgicas compõem as ações do espetáculo cruzando diferentes níveis de descrição de construções de imagens que se delineiam através do fluxo de relações entre os dançarinos, as nuances da iluminação, na estruturação dos elementos que compõem a cena, no figurino, bem como nos diversos corpos/públicos presentes no ambiente. Todos os acontecimentos e suas releituras proporcionam diferentes estados corporais que surpreendem pela qualidade de organização e de poética. Esse desvelamento de acontecimentos e de estados corporais que emerge das ações dos dançarinos e de suas trajetórias no espaço/tempo da cena, se dá muitas vezes de forma inesperada e tão bem articulada, que no tempo de sua execução a invisibilidade se faz presente. Essa característica organizacional busca mostrar uma dança que se constrói a partir de impressões singulares, de experiências sentidas e percebidas entre seus autores através de processos de compartilhamento, e que não fazem parte do pensamento comum, do fazer da dança de combinações de passos. Esse é um ponto crucial dessa obra, o fazer da dança a partir das singularidades. O público é assim tomado de surpresa e de encantamento.

Lá no finzinho, um radinho de pilha nos remete ao passado. Da escada pode-se ver os convidados sentados ao redor da mesa posta, preenchida de canecas, biscoitos e idéias que se cruzaram, histórias subentendidas e veladas pela iluminação que recorta os corpos dos convidados. Fica a cargo do público sua complementação e interpretação. O radinho de pilha, uma canção francesa expõe a impressão da pequenina Louise, seu jeito de dançar contaminando os corpos, um presente para seu amigo.


 O espetáculo, delicado e sutil, mas imbuído de uma dramaticidade onde corpo e pensamento se encontram em um só movimento. Seus segredos, antes guardados, se dão a ver localizados agora em outros corpos, pois contaminados estão pelos acontecimentos imagéticos do espaço/ambiente/contexto cênico. A delicadeza se espalha, se funde e se desdobra metaforicamente num só corpo. Odete, o dia que perdemos o vôo, seus mortos, bôina verde, beliche, presenças, sabores, Lucas, contos, segredos, chás, memórias, o dia passando, Edu O, canecas, suas canções, lágrimas cortantes escorregando pelo rosto, piquenique, agora atravessam nossos corpos, estamos assim preenchidos uns pelos os outros, colaborativamente, co-autores implicados e responsáveis pelo fazer do lugar escolhido. As conexões tornam-se estreitas, os corpos tornam-se múltiplos, as imagens se transformam e nos transformam. A atmosfera poética constrói seu tecido expondo uma densidade, uma textura e uma viscosidade própria, compartilhada e móvel, porque suas margens irão mudar sempre a cada olhar, a cada idéia, a cada pensamento, a cada dia, a cada...sentir. 


Fafá  Daltro
Profa. Dra. Escola de Dança/UFBA.
Coreógrafa Grupo X Improvisação em Dança. 


Odete, traga meus mortos,
dia 12/06 (neste domingo), as 20h, no Theatro XVIII (Pelourinho), R$ 5,00
A convite do Núcleo Vagapara que apresenta seu Repertório de sexta a domingo, neste teatro.                                                                                        

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