Já passava da meia-noite e nada. Os dois pratos continuavam emborcados na mesa da sala de jantar cercados de talheres, guardanapos vermelhos, copos e coisas. Na sala da televisão, sempre ligada, o batom enfraquecido no canto direito da boca que baba, daquela cabeça encostada na almofada do sofá de dois lugares. Na mesa de centro torradinhas, gorgonzola, Camembert, peito de peru defumado, patês, azeitonas espetadas e ovos de codorna para alegrar a noite. No jarro ao lado um buquê de rosas enormes, vermelhas e no canto da sala uma comigo-ninguém-pode que ela trazia do quintal em ocasiões especiais e onde criava seu bichinho de estimação: a lagarta Judite. Meia-noite. Nenhum sinal da chegada dele, nenhum sinal de mensagem no celular. A maquiagem muito forte e os cílios postiços escondiam quem dormia esperando de salto agulha e vestido bem colado. Sonho já não tinha mais, já realizara tudo o que queria e o que queria era apenas um homem que a tirasse da noite e prometesse aquilo que acreditava ser um casamento. Neste caso, no máximo, duas visitas sempre no meio da semana. Nunca com horário de chegada, mas certamente com horário fixo de saída. O casamento era apenas uma ou duas chupadas rapidinhas e poucas metidas bem metidas depois, sem conversa. Era o tempo de tirar sua meia-calça, seu vestido, o sutiã preto com enchimento, pedir que calçasse novamente o sapato e o esfregasse no peito. Ele adorava sentir o peso do pé de um homem num salto alto. Priscila nasceu numa embalagem masculina, mas tinha recheio de mulher! Ele a comia por trás para não ver seu pênis e puxava seus cabelos, lindos, sempre escovados e de cor de mel. Gabava-se de ser a única da época da boate que não pintava o cabelo, acreditava que assim era mais natural, mais verdadeira. BIP. BIP. Ela acorda limpando a baba com o canto da mão e vê o polegar esquerdo sem a unha postiça, perdida entre as almofadas. “O carro quebrou. Amanhã jantaremos novamente”. A desculpa era sempre diferente, mas a falta constantemente igual. Priscila, proibida de ter amigas, espera aquele homem que não deixa seus filhos, nem esposa para dar-lhe o mínimo que precisa. Ela se consola com os queijos, vinhos tintos, maquiagens e a casa que ele montou para seus encontros furtivos, para seus poucos momentos de prazer. Tem poucas alegrias, Priscila. Encontrar a florista Ana é uma delas, porque a mulher escolhe as mais belas rosas para seu buquê e diz que a freguesa está sempre linda naquela manhã. Tira o sapato, pega o buquê, sobe para o quarto descabelada, sem chorar. Já estava acostumada a esperar na sala. Deita-se na cama sem roupa, masturba-se segurando o arranjo de flor, pensando na rosa do seu amado. O pênis esporra um leite que gostaria que fosse do outro. Dorme. Luz de abajur clareando aquele corpo de homem, de desejo, ornado com uma rosa na cabeça.
* Este título foi criado por Fafá Daltro para uma personagem do espetáculo "Os 3 Audíveis -Ana, Judite e Priscila" do Grupo X de Improvisação em Dança. Criei a estória a partir das idéias sobre a personagem.
2 comentários:
Cara, vim aqui através do Zé de Rocha. Gostei. Grande abraço.
forte texto. adorei!
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