segunda-feira, 3 de maio de 2010

Cântigo negro





"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


José Régio

Há dois dias estou com este poema na cabeça e na boca. Hoje acordei de um sonho estranho, uma festa temática, reveillon, e eu esquecia minha fantasia, minha roupa nova. Maria Sampaio chegava de vermelho, num lindo vestido e dizia que estava vestida de Iansã. Nesse momento o cenário mudava e estávamos a beira do mar com ondas fortes (sempre tenho sonhos com ondas gigantes  e/ou fortes). Eu ficava com medo, como sempre tenho nesses sonhos e acordava. Despertei com a poesia de José Régio novamente na boca. Corri para procurá-la e publicá-la aqui no Monólogos.
 
Gostei de presentear esta poesia numa segunda-feira que começou com cara de preguiça, ouvindo ainda Maria Bethânia nessa maravilhosa interpretação.

Um comentário:

Gerana Damulakis disse...

Também sonhei com Maria outro dia. Ela está um pouco ausente do blog, daí recorrermos ao sonho.
Maria: estamos sentindo sua falta.