sábado, 10 de novembro de 2012

A Cena do Ódio

Almada Negreiros, (7.4.1893-15.6.1970), Portugal. 

Ergo-me Pederasta, vaiado por imbecis, 
Divinizo-me Meretriz, ex-libris do pecado, 
Sou raiva de Medusa e danação do Sol. 
Ladram-me a vida por vivê-la e só me deram uma, 
Uma, agora, quero vivê-la, Narciso do meu ódio, 
Ódio de um último instante de condenado inocente.

E tu, tu que te dizes Homem, 
que inventaste as ciências e as filosofias, 
as políticas, as artes e as leis, 
e que aperfeiçoas a arte de matar, 
Tu, que descobriste o Cabo da Boa Esperança, 
o caminho marítimo para as Índias
e as duas grandes Américas e que levaste a chatice a estas terras
e que trouxeste de lá mais chatos praqui
e que ainda por cima cantaste esses feitos, 
Tu, que inventaste a chatice e o balão
e que farto de te chateares no chão te foste chatear no ar
e que ainda foste inventar submarinos
pra te chateares também debaixo d'água. 
Tu, que tens a mania das invenções e das descobertas 
e que nunca descobriste que eras bruto (chato)
e que nunca inventaste a maneira de não o ser. 
Tu consegues ser cada vez mais besta, besta
e a este progresso chamas de civilização. 

Tu e eu, eu aqui, sepultado vivo, Mendigo de mim próprio, 
sem condições de fazer fortuna porque Deus, por escárnio, 
me deu inteligência, irmãs feias e uma mãe que jamais se venderá
por mim. 

Pois bem, pústula, obeso e rotundo sanguessuga, 
quanto mais penso em ti, mais creio que Deus 
perdeu de vista o Adão de barro
e, com pena, fez outro de bosta por lhe faltar barro e 
inspiração. 
Enquanto esse Adão dormia, os ratos roeram-lhe os miolos
e de suas fezes, nasceu a Eva burguesa. 

Deles, nasceste tu, e em toda parte teu papel é admirar
mas nunca acertas numa admiração feliz
porque teus desejos são avaros como as tuas unhas sujas e ratadas
e os homens são na proporção dos seus desejos. 
Não te cora ser grande o teu avô
e tu, apenas o teu neto, e tu, apenas o seu esperma? 
Não te dói Adão mais que tu? 
Não te envergonha o teres antes de ti outros maiores que tu? 
Jamais eu quereria vir a ser um dia o que o maior de todos já o 
tivesse sido, 
eu quero sempre muito mais
e mais ainda, muito pra além desse infinito. 
Tu não sabes, meu bruto, que nós vivemos tão pouco
que ficamos sempre a meio caminho do Desejo? 

A terra vive desde que um dia deixou de ser bola do ar
pra ser solar de burgueses. 
Existiram homens de talento, gênios e imperadores. 
Cansou-se o mundo de estudar e os sábios morreram velhos, 
fartos de procurar remédios e nunca acharam o remédio de parar. 
E à beira do século XXI, eu vivo farto de ver desfilar burgueses
trezentos e sessenta e cinco vezes ao ano, 
vinte e quatro horas de chatice, 
sessenta minutos de tédio, 
sessenta segundos de mediocridade...

Merda para os homens de todos os tempos
merda para a civilização e para a cultura, 
merda para a arte e a ciência! 

Eu queria poder, como tu, sentir a beleza de um almoço pontual
e a felicidade de um jantar com as bestas da família. 
Eu queria, como tu, sentir o bem-estar que a imbecilidade dá, 
Eu queria, como tu, viver enganado da vida e da mulher, 
sem o prazer doloroso de ser inteligente. 
Eu queria, como tu, ignorar que os outros não valem nada
para poder admirá-los, como tu. 
Eu queria que a vida fosse tão divina quanto tu garantes que é. 
Eu te invejo, pedaço de cortiça a boiar na superfície
sem nem desconfiar da profundidade do mar.

Olha para ti, olha, 
se não consegues te ver, concentra-te, procura-te, 
encontrarás primeiro o alfinete do terno, 
então, espeta-te nele para não te perderes de novo, 
e agora, observa-te. 
Quieto, 
não te odeies ainda, que ainda nem começaste. 
Vês? É o horror! É o horror! 

Mas, talvez tenhas saída. Sim, talvez tenhas. 
Larga a cidade e foge! 
Larga a cidade. 
Larga a casa, foge dela, larga tudo! 
Nem te prendas com lágrimas que lágrimas são cadeias. 
Larga a casa e verás: Vai-se o pesadelo! 
Mas larga tudo, tudo, 
os outros, os sentimentos, os instintos
e larga-te a ti também, a ti principalmente!
Larga tudo e vai para o campo, 
e larga o campo também, larga tudo! 
Põe-te a nascer outra vez! Não queiras ter pai nem mãe, 
não queiras ter outros, nem inteligência. 
Já h inteligência demais (não vês?), pode parar por aqui. 
Depois, põe-te a viver sem cabeça, 
v só o que os olhos virem, 
cheira os cheiros da terra, come o que a terra der, bebe dos rios 
e dos mares, lambuza-te de natureza. 

Pústula! Tens medo! Nem vives, nem deixas os outros viverem, 
crápula... Hás de pagar-me! 
Hei de ser a cigana de tua sina, hei de ser a bruxa do teu
remorso, 
e mais que isto, verme, hei de ser a mulher que desejas, hei de 
ser ela sem te dar atenção.

Um comentário:

Bípede Falante disse...

Li no Mínimo Ajuste.
Bárbaro, Edu.

beijoss