quinta-feira, 19 de junho de 2008

O passado de novo

Todas as noites ele chegava
Como quem assiste a um espetáculo pela primeira vez
Olhos curiosos, procurando, bulindo, vasculhando,
Descobrindo em cada canto da casa alguma novidade
A mesma casa que conhecera há tempos atrás
Mas havia sempre um detalhe, um objeto,
Uma surpresa descoberta:
Um incenso, uma flor num jarro novo,
Uma nova xícara para o mesmo conhaque com café
Para um gosto novo na boca que era nossa.
Olhava meu corpo com olhar de paquera
E descobria sempre um ponto, um sinal, uma espinha chata
Que mancharia aquele corpo que ele dizia: “Meu”
Aqueles dedos percorrendo meu arrepio,
Aqueles lábios tocando meu desejo,
Aquele homem protegendo meu corpo...
Os mesmos dedos, mesmos lábios, mesmo homem
Em novos arrepios, novo desejo,
Meu corpo novo, embora mais marcado, cansado
E mesmo assim mais feliz.
Eu, do meu lado, o via entrando,
De imediato disparava uma campanhia,
Uma locomotiva em mim
Como se nunca o tivesse visto.
Tínhamos o mesmo anel artesanal
Comprado num hippie camelô de uma cidade do interior:
Coração de Maria.
Eu tinha a impressão que era meu coração que estava exposto como na imagem
Meu coração o adorava como a um santo
Nos conhecemos assim,
Numa coincidência dessas de final de tarde, de pôr-do-sol
A minha mão esquerda de despedida
Tocando a sua mão direita de intruso
Pegando o mesmo anel escolhido
Dois sorrisos, dois olhares,
Uma só gentileza
“Pode ficar!”
E´ que eu já havia pagado pelo anel
Mas a indecisão que me acompanha
Atrasou a minha compra
No jogo de empurra
O artesão resolveu produzir outra peça idêntica
Nesse momento eu já sabia
Que ele era de Sagitário com ascendente em Virgem
Eu já tinha 29 anos, beirando os 30
E sou de Áries sem ascendente
Conversamos horas sobre gostos, musica, profissão,
Hotel, passagem, ida...
Eu que tinha ido visitar um parente
E já estava de saída,
Permaneci mais dois dias
Sob os olhares indiscretos daquela gente.
No ônibus de volta
Falamos de impulso, loucura, casamento
E de como os apaixonados se renovam a cada novo desejo
A nossa paixão nos mantinha
Numa novidade a cada instante
Nada, mesmo que repetido, era igual
O seu gosto por mais conhecido que fosse
Para mim era novo
O rosto, os pelos, os cabelos,
O sorriso, a voz, a canção,
O andar, o abraço, o amor, a mão...
Tudo fazia parte de um mesmo contexto antigo
Mas que era atual
Ou atualizado a cada chegada de um novo dia
A cada ritual novo de um novo banho,
De um novo jantar, de um novo beijo...
Ele chegava manso,
Morno,
Amoroso,
Viril,
Gostoso,
Naquele velho gosto de conhaque com café
O sono tranqüilo como nunca havia dormido um dia
Sem a insegurança do ciúme pelo sonho,
Pela camisa amarrotada,
Pelo telefone no bolso da calça...
Tudo era meu
Tudo era eu
A despedida nunca foi martírio, forca, guilhotina
Era um intervalo da sessão da tarde,
Cada um para um escritório
De vez em quando para a cervejinha do final da tarde
E o retorno sempre confirmado
Era então que o dia se completava
E a rotina virava amiga primeira
Madrinha de casamento
Mas teve uma noite que ele não veio
Duas noites sem retorno
Três, quatro...
Aquela infinitude de minutos sem ele
Era o final da ampulheta dos meus dias
E aquela novidade realmente nova
Maldita, sem graça, sem porque
Fez da minha sessão da tarde
Um corujão da madrugada
Lambia a ultima gota da xícara
Como quem chupa uns seios, um pênis, uma vagina
Eu me sentia uma menina
Com ímpeto de quebrar a xícara
Como quem rasga calças, cuecas, vestidos
Tomando leite no pires
Como quem beija uma boca
Tão louca, desnorteada,
Sem bússola,
Caminhando para um sul
Que eu não sabia para onde me levaria
O telefone veio pelo fio
Espatifado nos pés do porteiro no playground
Os incensos, o jarro, a xícara,
A revista, o porta-retrato, cadeira e mesa
Tudo espalhado
Aos pés de uma pessoa insana
Que já não sabia o que fazer
Com a dor que insistia em acordar
A cada dia novo
Como se fosse o passado

PS 1> Já que estamos falando tanto em passado...

PS 2> Texto meu interpretado por Fabrício Boliveira na apresentação de Monólogos na Madrugada no Café Zélia Gatai e no Quixabeira - 2003

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei amigo,um espetáculo de texto, picante e envolvente;me senti um personagem da sua história.Bjss!!