sábado, 3 de janeiro de 2015

O homem que desabotoava os hábitos

Todo dia partia com o mesmo sorriso, um beijo, dedos alisando a cabeça, atravessava aquela porta do meio com grades e vidro, passava pelos lírios e virava à esquerda até desaparecer na esquina da banca de revistas.

Para não ter do que lembrar quando ela partisse, decidiu afrouxar os botões da camisa engomada. Começou a se despedir sempre de forma diferente e a despetalar algumas flores do vaso. Mudou os móveis de lugar e para nunca mais haver o lugar dela, em cada refeição brincavam de ciranda ao redor da mesa. Às vezes, sentava no chão, em cantos distintos da sala. Buscava meios de alterar a hora do sono, a luz da escrivaninha, o sabor do café, a cor da caneta, o molho da salada. A sopa da noite passou a frenquentar o almoço e a fazer surpresas no desjejum. O banho podia se dar no quintal ou esfregando toalha pelo corpo e até em jato de mangueira na garagem. A casa foi ficando vazia e com mais portas do que ele havia percebido em todo este tempo em que habita o lugar.

Um dia, já sem ela, perdeu-se no labirinto de portas sem identidade que compõem o ambiente. Ele que sempre se interessou por fechaduras de portas abertas, não sabia, agora, o que abrir e mesmo sem algo específico que o fizesse lembrar dela, era impossível não chorar com a música que não saía de sua cabeça. E há tempos não consegue parar de bailar no salão da casa de cadeados trancados.

foto Edu O.

Um comentário:

consuelo rocha disse...

Que bom que Monologos voltou. Estava fazendo falta. E voltou com tudo! Forte, sensível e belo.Bjs