Escrito por Edu O., Estela Lapponi e Wagner Schwartz, em 17/01/2014
Projeto 7x7
PARTE 1 – O MOVIMENTO DE UMA PESSOA SERÁ SEMPRE DIFERENTE DO MOVIMENTO DE UMA OUTRA PESSOA
Passeando por uma avenida com meus amigos, eu precisava me desviar de alguns buracos e eles de outros. Edu não encostava os pés no chão, o espaço entre sua perna de rodas e a calçada deixava as fissuras imperceptíveis – embora ele sentisse, sistematicamente, os desvios que eu precisava fazer enquanto o empurrava. Estela saltava as rachaduras sustentada por seus dois outros braços de ferro.
No meio do caminho, meu pé esquerdo se prendeu por três vezes e, enfim, por uma quarta ou quinta vez. O lado direito de meu corpo compensava o peso do outro; em minha cabeça, se passava um monte de informações que buscava a minha atenção e a deles.
Caminhávamos, desavisados pelo desnível dos passeios que nos deixava sem equilíbrio, em um estado de risco, dependentes uns dos outros. Por vezes, voltávamos a falar sobre nossa amizade e sobre coisas que não interessariam serem escritas. Entre um momento e outro, o deslocamento voltava a ser um prazer, porque estávamos, os três, pensando ao mesmo tempo.
Se a viagem que fazíamos pudesse ganhar em qualidade, ela precisaria da ação de quem pode decidir sobre a pavimentação das avenidas e, também, sobre a qualidade de vida das outras pessoas – porque os problemas de uns podem ser, mesmo em suas diferenças, os problemas dos outros.
Edu, Estela e eu aprendemos sobre nossos direitos civis na escola. Do lado de fora, na relação com as coisas mais óbvias, experienciamos a falta desses direitos. Por vezes, os espaços se organizam na separação entre quem não precisa estar nas ruas e aqueles que só vivem se estiverem passeando por elas. Essa forma de ajuste dos direitos no mundo ajuda a manter os movimentos do emprego, das vendas dos livros técnicos e de autoajuda, do isolamento e da preguiça.
Alguém interrompe a nossa viagem para dizer que nossas diferenças são especiais, merecem uma atenção privilegiada. Considerando os desvios entre os universos do gesto e da palavra, aquilo que sobra se apresenta na forma de um discurso sobre a garantia das ressalvas, sem interjeição: meus amigos se tornam deficientes e eu, homossexual. Para cada qual, surge uma manifestação de oportunidade no mundo como a Dança Inclusiva e o Movimento Queer. Sem tomarmos conhecimento de uma distinção, passamos de cidadãos a vítimas.
Mesmo que as avenidas tenham, para cada uma de suas passagens, o seu argumento, existe para cada uma de suas partes, como também para os buracos: aqueles que os criam, aqueles que passam por eles e, ainda, a geração de quem os observa. Deixar de observar e passar a ser observado, sem chance para uma conversa, faz parte do movimento mundial das coisas que repudiamos. Claro, pensem o que quiserem pensar.
As coisas serão sempre assim, porque geram lucro. Mas, seria interessante, num presente próximo, se parassem de publicar o que pensam sobre a nossa condição em grande escala ou, ainda, pedissem informações mais precisas sobre qual é a situação – social, cultural, política, psíquica – que nos acompanha, como pedir licença para entrar na casa do vizinho. Isso evitaria o constrangimento de muitos.
Vivemos em um momento em que temos a chance de sermos como nascemos, da forma que nascemos sem imaginar que isso seria um risco ou deveria ser levado em consideração por pessoas que passam longe de nossa história. Se nossa forma de vida não causa nenhum significado para as vidas dos outros em particular, seria mais interessante pensar que passeamos por uma mesma avenida e que as adaptações precisam ser feita para todos, porque o movimento de uma pessoa será sempre diferente do movimento de uma outra pessoa.
PARTE 2 – CADA PESSOA É UMA OUTRA PESSOA
Define-se corpo como uma estrutura humana. Ele nos identifica, nos coloca em grupos ou fora deles, nos transforma em seres perceptíveis, nos qualifica enquanto pessoas – cada qual com qualidades distintas, sem possibilidade de comparação.
PARTE 3 – UM CORPO A CORPO NAS IDEIAS
Recentemente, em São Paulo, ocorreu a Mostra Internacional de Arte +Sentidos. Um evento inédito que ofereceu acessibilidade comunicacional e arquitetônica para qualquer pessoa. Sua programação continha espetáculos de dança, teatro, performance e debates, encontros, workshops realizados por artistas com e sem deficiência.
A Mostra foi realizada no Teatro Sérgio Cardoso e foi promovida pelo Governo do Estado de São Paulo, por meio das Secretarias da Cultura, dos Direitos da Pessoa com Deficiência e em parceria com o British Council, através da mostra UNLIMITED – Arte sem Limites (maior programa voltado à produção de trabalhos realizados por artistas com deficiência, lançado em 2009 pelo Comitê de Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Londres 2012).
PARTE 4 – ESTELA LAPPONI
Considero a Mostra +Sentidos inaugural na história de São Paulo e, talvez, do Brasil, pois ela cria sua importância na extensa programação, na qualidade/quantidade de artistas e profissionais envolvidos e no teatro que a sediou propondo, em sua estrutura, todos os dispositivos de acessibilidade. Fiquei impressionada com a prontidão e organização dos profissionais que atendiam o público.
Como artista, foi importante conversar sobre a audiodescrição de meu trabalho. No exercício de uma edição, o lugar do outro se expande. Neste caso, Andrea Paiva foi uma excelente profissional, porque acompanhou cada detalhe de uma tradução.
+Sentidos possibilitou, também, a experiência do público com o próprio público: pessoas com deficiência visual, auditiva ou física puderam participar dos espetáculos, encontros, workshops de forma distinta. Pessoas sem deficiência puderam experimentar os dispositivos de acessibilidade para compreenderem como se davam as passagens de um sentido a outro, desse ou daquele modo. Pessoas com e sem deficiência se encontraram no evento, com direitos iguais.
O mundo acontece quando ele se especializa.
PARTE 5 – CADA PESSOA PODE SER
Esse foi o primeiro grande evento em São Paulo que tinha em sua programação trabalhos produzidos por artistas com deficiência. Outros eventos, com pequeno e médio porte, também existem no Brasil ou espalhados pelo mundo, mas os meios de comunicação social ainda insistem em dar, a cada um desses encontros, uma certa ideia de extraordinariedade. Em seus discursos jornalísticos prevalecem os “exemplos de superação”, a “lição de vida”, a “dança para todos” ou “a arte de outros corpos”.
Penso que nós, artistas com deficiência, alimentamos essa máquina. Talvez tenhamos começado a aparecer na cena de um jeito meio estranho. No séc. XVII, nos chamados freak shows (espetáculo de fenômenos), os artistas com deficiência ou com habilidades físicas excepcionais eram as atrações bizarras nos circos itinerantes e nas cortes. Nos tempos das monarquias e impérios, eram indigentes bufões da Idade Média.
Fosse como fosse, causávamos reações distintas no público. Com o tempo, pudemos decidir sobre apresentar-nos de outras formas, humanizando a nossa presença, expandindo as possibilidades de pensar o corpo e as suas diferenças.
Hoje, existem inúmeras companhias de dança, teatro, circo que possuem, em seu elenco, pessoas com habilidades diferentes, tanto no Brasil quanto no exterior. O International Festival of Wheelchair Dance (Festival Internacional de Dança com Cadeira de Rodas), ocorrido em 1997, em Boston, é o primeiro evento que reuniu oito companhias profissionais de dança contemporânea oriundas da Europa, América Latina e Estados Unidos. Dentre outras atividades, o evento promoveu debates entre os participantes sobre a nomenclatura dessa “nova forma de arte”. Chegaram em algumas proposições como: Dança de Habilidades Mistas e Dança Inclusiva. Hoje, a classificação “inclusiva” é cada vez mais presente em nossa cultura.
Uma proposta artística quando categorizada como “inclusiva” esclarece ao consumidor que ele terá condições de usufruir daquele produto/obra com todos os dispositivos necessários para compreendê-la e/ou que aquela forma de arte se trata de um trabalho realizado por artistas com e sem deficiência. Mas o fato do artista ser uma pessoa/corpo com deficiência, justificaria identificar o seu trabalho, seja em qualquer forma de linguagem, de arte inclusiva? O quê, em nossa época, definiria essas especificidades? Qual é a necessidade de informar aos públicos que aquilo que eles irão experienciar será feito por pessoas com habilidades diferentes? Cada qual carrega em seu corpo uma diferença que o define enquanto pessoa.
O que de fato quer dizer arte inclusiva?
Algumas manchetes relativas ao evento +Sentidos em São Paulo, reafirmaram o lugar da arte inclusiva, da mostra inclusiva e dos devidos achismos que provém dessa categorização. Sem mencionar os conteúdos que sobrepõem as deficiências dos artistas aos trabalhos feitos por eles, tornando-os heróis e vítimas daquilo que são, ao mesmo tempo, podendo produzir o áudio de fundo “óóóóó!!!” nas cabeças de certos leitores.
Na Mostra +Sentidos, em maior ou menor escala, os meios de comunicação social abordaram os artistas com deficiência tal qual os administradores dos freak shows. Se, naquela época, a forma de difusão dos eventos era brutal, pois divulgava os “extraordinários fenômenos humanos”; hoje, a relação entre mídia e espetáculo, em pleno séc. XXI, continua acentuando a curiosidade da massa, fortalecendo um processo de normatização ideológica vitimizador tanto para quem assiste ao trabalho, quanto para o próprio artista deficiente que se apropria dessa autopromoção, para conseguir seu lugar no mercado de trabalho.
O trabalho realizado por esses artistas, no entanto, ficou em último plano, esquecido. Perguntas como: porque você investigou esse tema em seu trabalho? Como você desenvolveu a dramaturgia de seu projeto? Como foi o seu processo de criação? Não foram feitas pelos jornalistas. E, se foram, terminaram editadas.
Esse tipo de assédio não é restrito apenas às mídias brasileiras e nem exclusivo às pessoas com deficiência. Existem formas de abordagens internacionalizadas sobre gays, negros, favelados ou mulheres, feitas por pessoas que se sentem naturais – que acreditam prescindir de dispositivos que as façam existir.
Em Londres, onde as discussões a respeito da deficiência se intensificaram a partir da década de 70, no surgimento do Disability Studies (que problematizou a deficiência não somente pelo viés físico e biológico, mas também pelas barreiras sociais, arquitetônicas, comunicacionais e atitudinais) é possível notar que os meios de comunicação social naquele lugar ainda utilizam o discurso de superação quando se referem aos artistas com deficiência. Essa forma estratégica de observar o outro, ficou evidente no material de divulgação das Paralimpíadas 2012 – que sobrepôs a foto dos paratletas ingleses com o slogan Meet the super humans(“Conheça os super-humanos”).
É recorrente ver associado às pessoas com deficiência, quer na área esportiva ou artística, às palavras “limite”, “barreira”, “superação”, talvez porque o lugar em que os deficientes vivem seja um espaço em que os dispositivos de locomoção ainda não foram adaptados para eles, mas para uma grande maioria. A vida não pode se tornar mais cara do que ela já é. A noção de deficiência, nesse caso, não estaria mais ligada ao que está do lado de fora de uma pessoa do que naquilo que constitui o seu próprio corpo?
Precisamos de mais eventos como a Mostra +Sentidos, que pretendem valorizar a produção dos artistas com e sem deficiência, mas precisamos questionar também o modo como o evento é divulgado, pois não aceitamos que nossos trabalhos sejam enquadrados em categorias das quais não nos sentimos representados, destruindo qualquer possibilidade de conectá-los à arte.
É claro que os meios de comunicação social não estão sozinhos na fabricação de piedades, superações e exemplos de vida. No caso da mostra em questão, o equívoco, talvez, esteja no próprio release, feito pela assessoria de imprensa, que especificou a deficiência de cada artista participante. Isso nos faz refletir sobre a ação dos curadores, produtores, organizadores. Será que eles não entendem que essa ação dificulta a entrada dos artistas deficientes em outras mostras, como qualquer outro artista, no momento em que estamos discutindo arte e não fisicalidades?
Seria produtivo eliminar a espetacularização de nossa existência e seguirmos em frente no que diz respeito à produção artística de qualquer um.
PARTE 6 – DIREITO À DIFERENÇA
As Leis nº 10.048 (8 de novembro de 2000) e nº 10.098 (19 de Dezembro de 2000) garantem a acessibilidade. Elas já deveriam ter sido aplicadas em todos os espaços culturais (cinemas, teatros, museus, serviços públicos), não apenas em eventos em que pessoas com deficiência estarão se apresentando.
PARTE 7 – PESSOAS
Se o corpo tem diferentes definições e, por isso, formas infinitesimais de movimento; se um corpo é, também, uma pessoa e, portanto, toda pessoa é diferente uma da outra, porque a arte feita pelos artistas que possuem deficiência é insistentemente chamada como arte de outros corpos? Se substituíssemos a palavra “corpo” pela palavra “pessoa”, já que corpo é também uma pessoa, não soaria estranho dizer: “arte de outras pessoas”?
O outro é aquele que não é você.
Edu O. [www.monologosnamadrugada.blogspot.com.br] é integrante do Grupo X de Improvisação em Dança, desenvolve também projetos independentes e em parceria com outros artistas. Cursa o mestrado em Dança pela UFBA pesquisando as relações das políticas culturais brasileiras com a produção de artistas com deficiência.
Estela Lapponi [www.zuleikabrit.blogspot.com.br] desenvolve projetos independentes – inCena 2.5 – e em parceria com outros artistas. Desde 2010 investiga, em diversas expressões, o termo que criou: Corpo Intruso. Idealizadora da Plataforma Acessolivre.
Wagner Schwartz [www.wagnerschwartz.com] Trabalha com arte contemporânea, dança e literatura, entre São Paulo e Paris. Seus projetos problematizam as relações artísticas e seu percurso.